"Não assistirás a novelas do diabo", diz a auxiliar de escritório e cantora gospel Maria Betânia, 38, que não gosta de ser comparada à "blasfema" irmã de Caetano Veloso.

Eis o 11º mandamento que ela criaria contra "estes folhetins com gente que poderia ser minha vó se pegando", referência ao beijo trocado entre Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg em "Babilônia" (Globo).

Fiel da Igreja Universal, Betânia foi nesta quinta (28) à estreia de "Os Dez Mandamentos" nos cinemas, com tíquete "doado" por um pastor.

	Marcus Leoni/Folhapress
	Sala de cinema do shopping Bourbon, na estreia do filme 'Os Dez Mandamentos'

A compressão para duas horas dos 176 capítulos da novela bíblica exibida de março a novembro de 2015 na Record, emissora do fundador da Universal, bispo Edir Macedo, bateu recorde de pré-venda de ingressos no Brasil —os últimos números liberados pela Record davam conta de 3,2 milhões vendidos, cinco vezes mais do que o novo "Star Wars" a uma semana da estreia.

Betânia diz ver "a mão de Deus" nesse sucesso. Já as atendentes do Espaço Itaú de Cinema no Shopping Bourbon, na Pompeia, zona oeste de São Paulo, viram a mão de um representante da Universal, que pagou em dinheiro para comprar entradas para os quatro primeiros dias do cinema, segundo a Folha apurou.

Ainda que as sessões no Bourbon estejam lotadas, há lugares vagos nas salas —o que pode ser atribuído a ingressos distribuídos, mas não utilizados. A Folha foi abordada por três mulheres que diziam ser da Universal e ofereciam tíquetes de graça.

"É dia de semana, pessoal tá trabalhando, está difícil [encher a sala]", disse uma delas, sem querer se identificar. Em sua mão, sete entradas procurando um dono –cada uma valeria R$ 32 (a inteira) na bilheteria.

O departamento de comunicação da Universal nega a compra direta de tíquetes e diz que a igreja apoia a atuação de "grupos voluntários e de projetos beneficentes" para que "o público em geral tenha a oportunidade de ver o filme".

As 12 sessões diárias no local, com 196 lugares cada (2.352 no total), estavam esgotadas na estreia.

Para a costureira Maria Eulina da Conceição, 59, trata-se de "um milagre". "Depois dessa, muitos incrédulos vão pegar firme com Deus", diz a também seguidora da Universal, com uma camiseta do filme por cima de outra blusa social –a filha Elaine Segura, 41, preferiu usar uma blusa de lantejoulas douradas ("é um dia especial").

Moradoras de Brasilândia (zona norte), mãe e filha contam ter vendido "muito frango e batata frita" na porta da igreja para ajudar a pagar a entrada de "almas que não são da igreja", diz Maria Eulina.

Ela também afirma ter feito "sorteio de moto", com veículos fornecidos por "empresários ligados à igreja".

Com tubinho azul de festa, a estudante Camila Macario, 26, conta que ganhou seu ingresso de um "amigo da Universal, uma cortesia".

Membro da igreja evangélica Boas Novas da Alegria, ela diz ter cansado de "pornografia e violência" na TV e no cinema. "Os Dez Mandamentos" foi classificado pelo Ministério da Justiça como impróprio para menores de 12 anos, por conter cenas violentas.

Como Maria Betânia, Camila tem aversão a beijo gay em novelas. "Isso eu nem cogito, fim da linha."

MILAGRE EM DOBRO

Mesmo sem responsáveis, crianças não estão sendo barradas, apesar da classificação indicativa ser de 12 anos.

"O pastor disse que estava tudo bem ser 'de menor'", diz o estudante Rudson Silva, 11, com um saco de pipoca que lhe custou "meia mesada" (R$ 11,50) –há a opção de comprar um balde customizado de "Os Dez Mandamentos" (R$ 37 o combo pipoca mais dois refrigerantes, no Tietê Plaza Shopping).

Para Rudson, o "milagre é em dobro": poder entrar na sala e ainda por cima tão bem acompanhado.

"Eu era muito afim da Raquel, mas ela gostava do Renatinho. Só que aí eu chamei ela pra ir no cinema comigo, e ela disse que sim. Glória a Deus."