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    OPINIÃO

    Tentativa de criar best-seller cai em banalização de 'Minha Luta'

    RICARDO LÍSIAS
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    06/02/2016 02h05

    Tenho me incomodado com as justificativas das editoras que pretendem publicar "Minha Luta", o libelo nazista de Adolf Hitler, no Brasil. Como se sabe, a bibliografia sobre o Holocausto é gigantesca. Boa parte da filosofia e da teoria literária produzida a partir de 1945 trata da tragédia inominável comandada pelo autor em questão.

    Em resumo, são duas as principais conclusões: a singularidade dos acontecimentos e a banalidade de quem tenta justificá-los.

    Uma edição comercial de "Minha Luta", ainda mais da maneira com que vem sendo realizada no Brasil, incorre nesses problemas.

    O lançamento, por exemplo, exige publicidade. O marketing já começou e até aqui se mostrou desastroso, para dizer o mínimo: um cartaz enviado por e-mail por uma das editoras mostra Hitler em posição marcial e circunspecta, como se fosse um ícone a ser respeitado.

    A capa que até aqui tem circulado segue essa mesma estética, dando inclusive dignidade à imagem do comandante nazista. Eu imagino a dor dos sobreviventes do Holocausto e de seus descendentes vendo uma coisa dessas. Hitler não merece dignidade.

    Ninguém aqui está lidando com Dan Brown [autor de "O Código Da Vinci"] ou com a corrupção desse e daquele partido político. É sempre bom ter um pouco a dimensão das coisas.

    Uma das editoras vem tentando se justificar apresentando seu produto como "antinazista" pois traz um aparato crítico e muitas notas de rodapé. O significado é o seguinte: compre esse livro para saber que o texto dele é um equívoco.

    BANALIZAÇÃO

    Fico me perguntando que tipo de pessoa compra um livro para saber que o texto não presta. Minha próxima dúvida é mais séria: quem ainda não sabe o que significa o texto de Adolf Hitler?

    A única maneira de uma edição de "Minha Luta" não incorrer na banalização e também não ser censurada (já que nenhum livro deve ser censurado) é por meio de uma edição não comercial. Qualquer pessoa pode entrar em uma biblioteca e ler o livro que quiser. O medo de se identificar aqui é sintomático...

    Por fim, não acho uma boa saída o poder judiciário arbitrar o que as pessoas devem ou não ler. No entanto, lembro que a questão das biografias começou mal e terminou da melhor forma possível.

    A principal utilidade do que promotores e juízes estão fazendo neste caso é controlar a ansiedade (essa palavra foi usada por uma peça publicitária do livro, inclusive) com que as edições estão sendo feitas.

    Quando banalidade e ansiedade se juntam, o resultado é quase sempre lamentável.

    RICARDO LÍSIAS é escritor, autor de "Divórcio" e "Concentração". Doutor em literatura brasileira pela USP, realiza pesquisa de pós-doutorado na Unifesp. Também atuou como professor e escritor convidado na Universidade de Viena

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