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    Festival de Berlim tem três filmes brasileiros que fogem do estereótipo

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    GUILHERME GENESTRETI
    DE SÃO PAULO

    11/02/2016 02h04

    Um adolescente da etnia ticuna tem de enfiar a mão dentro de uma luva repleta de formigas tucandeiras no ritual indígena que abre "Antes o Tempo Não Acabava", um dos três longas brasileiros na mostra Panorama do Festival de Cinema de Berlim,que começa nesta quinta (11).

    A sequência, contudo, pode desapontar o europeu que buscar nesse drama mais um olhar exótico do cinema brasileiro, segundo os diretores Sérgio Andrade e Fábio Baldo.

    "Não queria mostrar o estereótipo da Amazônia", diz o manauara Andrade. "Queria o intermediário: o ser que sai da floresta para a cidade, mas não deixa de ser índio."

    Anderson (Anderson Tikuna) é um jovem indígena que deixa as convenções de sua aldeia ao se mudar para Manaus, seduzido pela cultura urbana. E vai parar numa fábrica do distrito industrial.

    Yure Cesar/Divulgação
    Anderson Tikuna em cena do filme "Antes o Tempo Não Acabava"
    Anderson Tikuna em cena do filme "Antes o Tempo Não Acabava"

    É um filme nacional, mas com legendas para brasileiros: boa parte é falada em quatro outros idiomas, dos nativos que, como Anderson, habitam os entornos de Manaus, "todos de várias etnias, mas se chamando de parentes".

    "Antes" é o primeiro longa do paulista Baldo e o segundo de Andrade, que dirigiu "A Floresta de Jonathas" (2012), sobre um garoto de beira de estrada que se junta a dois jovens e se embrenha na mata. O filme despertou o olhar para a produção na Amazônia.

    "O cinema nacional sempre privilegiou os dilemas do homem do Sudeste, já explorou o Nordeste e o Sul. Mas o homem do Norte ainda carece de expoentes. E nele o índio está presente", diz o manauara.

    TRAGÉDIA ADOLESCENTE

    Em 2015, a diretora Anna Muylaert ganhou o prêmio do público em Berlim com "Que Horas Ela Volta?". Agora, volta à seção Panorama (fora da competição do júri) com uma "tragédia adolescente".

    "Mãe Só Há Uma" ("Don't Call Me Son", no mercado internacional) baseia-se no caso de Pedrinho, bebê roubado dentro de uma maternidade de Brasília, em 1986, e localizado 16 anos depois pelos pais biológicos, vivendo com sua sequestradora.

    Pierre (Naomi Nero, sobrinho do ator global Alexandre Nero) descobre que se chama Felipe –e também que sua velha nova família terá problemas em aceitar sua transexualidade que começa a entrar em erupção.

    Folhapress
    Naomi Nero e Marina Zaparoli em '"Mãe Só Há Uma'"
    Naomi Nero e Marina Zaparoli em '"Mãe Só Há Uma'"

    Matheus Nachtergaele é o pai. A atriz Dani Nefussi interpreta as duas mães: a que pariu e a que criou.

    Logo no começo de "Mãe Só Há Uma", Pierre está numa festa e leva uma garota ao banheiro. Começam a transar, e a câmera dá um close nos quadris. Ele usa cinta-liga.

    A necessidade de falar sobre a questão de gênero –ausente na história que inspirou o filme– partiu de outra descoberta, dessa vez da diretora.

    Anna, 51, conta que, nos últimos dois anos, começou "a andar com gente muito mais nova". Sem ir à balada "há uns 15 anos", certa noite se viu em uma festa no centro de São Paulo. "Bebi para caralho", afirma. Basicamente uísque.

    "Foi ali que algo se abriu em mim." Ela se deu conta de que rótulos como "ser hétero, viado, bi" de nada serviam naquele ambiente. "Cada um tem sua sexualidade, como uma digital." Inclusive ela, que naquele dia percebeu também ter "tesão por mulher".

    Com esse novo trabalho, Anna acredita que "quebra expectativas" em relação a "Que Horas Ela Volta?", "um filme de maturidade".

    Antes de ser chamado pela cineasta, Nero tinha feito alguns curtas e um comercial de chocolate em que dançava com Claudia Leitte.

    Com sua estreia no cinema, viu um "canal para falar por ela uma coisa que não é falada". Ela, no caso, é sua irmã transexual –ele próprio se define como "pansexual". "Há uns quatro anos, sequer existia a palavra trans. Era traveco e pronto", diz Nero.

    BRASILEIRO EXECUTADO

    Completa a escalação nacional em Berlim o documentário "Curumim", de Marcos Prado, que revira a história do brasileiro Marco Archer, executado no ano passado na Indonésia sob a acusação de tráfico de drogas. A trama também está no livro "Condenado à Morte", do jornalista da Folha Ricardo Gallo (Três Estrelas, selo editorial da Folha).

    "Ele tinha a certeza que não ia ser morto. Eu também, mas o filme acabou se tornando um diário do corredor da morte", diz o carioca Prado, que conhecia Archer dos tempos do surfe na praia do Pepê, Barra da Tijuca, nos anos 1980.

    Camilla Maia-12.ago.1997/AgenciaOglobo
    Cena do filme "Curumim"
    Cena do filme "Curumim"

    Quando Archer foi preso, em 2003, lembrou-se do conhecido que mexia com cinema. "E me pediu para fazer um longa de ficção contando a história dele a partir de um livro que estava sendo escrito", lembra Prado. Os anos se passaram e o livro nunca saiu.

    Mas saiu a condenação à morte. "Pensei: 'Nossa, vão matar o Curumim, que terrível'. Sugeri um documentário."

    O condenado passou a registrar seu cotidiano na prisão com uma câmera e com um celular proibido. Archer e Prado também combinaram telefonemas semanais –80 horas de fita–, que estão no filme.

    A última delas foi feita 12 horas antes de Archer migrar para o seu isolamento de 48 horas, que precedeu a execução. "Chamam de processo de purificação", afirma o diretor.

    O documentário, diz Prado, tem um teor de denúncia: aponta o dedo para subornos e casos de corrupção no sistema prisional da Indonésia. "Um líder religioso que cometeu atentado terrorista em Bali não foi executado, foi liberado até. Já um sujeito que entra com cocaína no país..."

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