• Ilustrada

    Sunday, 05-May-2024 05:12:29 -03

    Como o smartphone está acabando com o desfile de moda

    VANESSA FRIEDMAN
    DO "THE NEW YORK TIMES"

    12/02/2016 11h47

    O primeiro grande evento da New York Fashion Week não acontecerá num espaço tradicional. Nem sequer faz parte da programação tradicional, que inclui cerca de 150 desfiles entre a manhã de quinta-feira e a noite da quinta seguinte.

    Em vez disso o evento terá lugar no Madison Square Garden e vai incluir não apenas uma coleção de roupas, mas também o lançamento de um álbum, e será acompanhado por um grupo seleto de editores de moda, críticos e varejistas, além de um grupo muito maior de consumidores, que vão lotar os mais de 18 mil lugares e, pelo privilégio, estão pagando até US$8.584 em sites de revendas (os preços oficiais dos ingressos variavam de US$50 a US$135). Para quem não conseguir uma lugar, o evento será mostrado em cinemas de 25 países, incluindo Macedônia e Austrália.

    O evento é o lançamento da coleção Yeezy Season 3 de Kanye West e também o lançamento de seu álbum "T.L.O.P.". Poderia ser visto como algo que desvia as atenções do que realmente interessa na semana de moda —uma peça de teatro de um outsider—, mas outra coisa está prevista para acontecer três dias depois que mostra o experimento da Yeezy sob ótica um pouco diferente.

    No domingo, Diane von Furstenberg, fundadora da grife que tem seu nome e presidente do Council of Fashion Designers of America (CFDA - Conselho de Estilistas de Moda da América), vai promover sua própria "experiência" em dois andares de sua sede em Manhattan, onde ela vive no andar de cima.

    Ela vai chamar convidados seletos para ver vinhetas com Karlie Kloss e Gigi Hadid, entre outras modelos destacadas, representando situações da vida real, coreografadas por Stephen Galloway, trajando peças de sua nova coleção. Os convidados vão poder conversar com Von Furstenberg e sua equipe e ter um contato próximo e pessoal com as roupas, de uma maneira que jamais seria possível em desfiles de passarela.

    E, como se isso não bastasse, quando a Burberry promover seu desfile de outono em Londres, uma semana depois, o evento será cercado de nostalgia. A partir de setembro a marca vai abandonar o conceito de "primavera" e "outono", passando a fazer desfiles de moda masculina e feminina, juntos, que vão abranger todas as estações. As roupas estarão nas lojas logo depois dos desfiles.

    Os três eventos representam um divisor de águas.

    Andrew Kelly-11.fev.2016/Reuters
    Modelos no lançamento da coleção Yeezy Season 3 de Kanye West na Semana de Moda de Nova York
    Modelos no lançamento da coleção Yeezy Season 3 de Kanye West na Semana de Moda de Nova York

    Diane von Furstenberg disse na semana passada: "Todo o mundo passou tempo demais seguindo as regras sem questioná-las, mas elas não estão funcionando mais. Estamos em um momento de confusão absoluta entre o que foi e o que será. Todo o mundo precisa aprender regras novas."

    O momento é de crise existencial na moda. De repente estilistas estão fazendo perguntas profundas sobre "finalidade" e "efeito", reavaliando o sistema no qual baseiam seu trabalho. E o estão fazendo sob a luz fria e azul emitida pelos smartphones. Poderíamos dizer que o estão fazendo por causa do olhar atento dos smartphones.

    As queixas em relação ao sistema dos desfiles de moda, uma corrida de um mês de duração que se repete a cada seis meses e abrange quatro países, para ver as roupas seis meses antes de elas chegarem às lojas, são manifestadas há muito tempo: dizem que a semana de moda é cansativa, antiquada, superlotada. Mas, enquanto pessoas do mundo da moda sempre reclaram principalmente do efeito que o sistema tem sobre sua vida, seu trabalho e sua criatividade, os problemas atuais são movidos por uma força mais poderosa: o interesse financeiro.

    Ou seja, o público comprador.

    Entrevistas com dezenas de varejistas, editores, estilistas e indivíduos sugerem que as mulheres estão sentindo fadiga de produtos. Depois de ser inundadas por imagens e streaming de desfiles, de programas de premiação em que as peças são usadas dias depois de aparecerem nas passarelas, e por campanhas publicitárias, quando essas consumidoras finalmente veem as roups nas lojas, os vestidos, saias e terninhos já parecem cansativamente familiares. Superados. Já eram.

    Ken Downing, diretor de moda da Neiman Marcus, comentou recentemente que estava mostrando a uma cliente um jaqueta bordada de US$11 mil que acabava de ser entregue, mas a cliente torceu o nariz e disse: "Você não tem nada novo?"

    "A jaqueta tinha chegado no dia anterior", ele disse. Mas já estava online desde outubro.

    A LEI DAS CONSEQUÊNCIAS NÃO PRETENDIDAS

    "As mídias sociais são o laxante do sistema de moda", disse Scott Galloway, fundador e presidente da consultoria digital L2. "Fazem todo o mundo digerir tudo muito mais rápido: as tendências, a descoberta de produtos."

    O mundo digital ensinou uma geração inteira a querer a gratificação imediata - é a chamada geração IWWIWWIWI ("I want what I want when I want it", ou "quero o que quero quando quero"). Embora o nexo Twitter-Instagram-Facebook-Snapchat tenha começado como promessa dourada, uma maneira de as marcas assumirem o controle de suas próprias mensagens e comunicarem-se diretamente com seus clientes, prescindindo de varejistas e críticos, criou uma situação em que, para muitas mulheres, tornouse inaceitável terem que esperar seis meses por algo que acabam de ver. Especialmente se podem comprar um simulacro aceitável de uma grife de "fast fashion" como Zara ou H&M, que conseguiu identificar a peça em fotos e avaliar seu sucesso pelo número de "curti" que recebeu.

    E tudo isso se confunde ainda mais com a promoção ida-e-volta do que é mostrado nas passarelas (produtos para a próxima estação) versus o que está nas lojas (produtos para a estação atual) e se exacerba pela ascensão do marketing pré-coleções entre uma estação e outra.

    "No passado, as vendas subiam muito no momento em que a coleção chegava às lojas; hoje isso não acontece mais realmente", comentou Paolo Riva, CEO da DVF.

    Sarah Rutson, vice-presidente de compras globais da Net-a-Porter, comentou: "Nossa psique mudou. Hoje o imediatismo impera."

    Porém, como ela observou, o mundo da moda segue um cronograma que exige que os varejistas vejam uma coleção meses antes de ela poder ser vendida, porque precisam fazer suas encomendas e aguardar para as roupas serem fabricadas. E revistas como "Vogue" e "Harper's Bazaar" têm "lead time" de três a quatro meses (levam de três a quatro meses entre receber uma pauta e levá-la ao papel). A semana de moda tradicionalmente serviu de esteio a isso -e desenvolveu um conjunto de partes interessadas que não têm nada a ver com a moda, propriamente dita, mas têm grande interesse em sua continuidade: as indústrias municipais que se beneficiam do fluxo de capital associado à moda. De acordo com a Corporação de Desenvolvimento Econômico da Cidade de Nova York, por exemplo, a semana de moda vale à cidade perto de US$900 milhões em impacto econômico anual total, incluindo estimados US$532 milhões em gastos diretos de visitantes. O impacto é semelhante nas três outras cidades do circuito de moda: Londres, Milão e Paris.

    Assim, por um lado temos um sistema imóvel de quatro geografias interligadas e, do outro, temos "consumidores e plataformas digitais que não receberam o memorando avisando que a moda tem quatro estações", conforme Galloway.

    Várias possibilidades andam sendo aventadas sobre como lançar uma ponte sobre esse abismo, sendo a mais popular uma combinação de pequenas apresentações de moda restritas a varejistas e revistas de moda, seguidas por um desfile "relevante ao consumidor" (palavras de Von Furstenberg) mais perto do momento em que as roupas chegarão às lojas. Mas não há nenhuma solução clara. Para cada estilista ou varejista que considera boa ideia a opção de um-dois, há outro que a vê como sendo cara demais, demasiado focada sobre o aspecto comercial.

    "Acho essa ideia tão absurda que nem sequer a comentei com meus clientes", disse Pierre Rougier, dono da PR Consulting, que trabalha com marcas como Hood by Air, J.W. Anderson e Louis Vuitton. "É muito perigosa, porque não é possível ter um desfile relevante ao consumidor com roupas que as lojas não compraram. Assim, o que você vê na passarela torna-se o que a loja gosta. Na prática, você está tirando o estilista do centro da equação e substituindo-o pelos varejista. E ideias novas não costumam florescer no setor do varejo."

    Algo que pode funcionar bem para uma marca grande, com poder de manufatura e suas lojas varejistas próprias, pode não funcionar para uma grife pequena. O que funciona bem para varejistas não necessariamente funcionará para os estilistas, que enxergam os desfiles como a oportunidade de declarar sua visão de suas roupas e que frequentemente sentem antipatia por suas criações depois de as verem por tempo demais.
    "Odeio tudo que fiz ontem", Alber Elbaz disse certa vez ao "Financial Times". "Tenho que odiar, senão como eu teria a energia e garra para criar algo novo hoje?"

    COMO VAI FICAR?

    Em dezembro o CFDA contratou o Boston Consulting Group para fazer sugestões de mudanças a serem adotadas no sistema de desfiles. O grupo vem consultando atores do setor para discutir ideias e vai divulgar suas conclusões em março. Mas, como observou Malcolm Carfrae, diretor global de comunicações da Ralph Lauren, sejam quais forem suas conclusões, não vão funcionar se não ganharem a adesão de todo o universo da semana de moda, especialmente as marcas europeias.

    Para um setor que finge abraçar as transformações, a moda é notavelmente resistente a mudanças. A última vez em que isso aconteceu foi em 1999, quando os desfiles de Nova York passaram de a escala final no carrossel das semanas de moda para a primeira, depois da decisão de Helmut Lang de impelir seu desfile para o começo da fila. Os esforços feitos desde então para mudar o cronograma, como a decisão de Yohji Yamamoto em 2002 de passar a criar alta-costura, deixaram os estilistas como vozes solitárias gritando no vento e foram abandonados posteriormente, se bem que talvez tenha sido esse precedente que convenceu o CFDA que ele pode liderar a campanha para transformar. Mesmo assim, nem todas as semanas de moda das diferentes cidades aderiram à proposta.

    Carlo Capasa, presidente da Camera Nazionale della Moda, o órgão que comanda o setor da moda na Itália, mencionou os problemas acima citados e acrescentou: "Produzir antes de exibir não evita vazamentos e pode levar a um mercado negro de informação".

    Seu colega na França, Ralph Toledano, presidente da Fédération Française de la Couture, du Prêt-à-Porter des Couturiers et des Créateurs de Mode, expressou reservas ainda mais fortes.

    Com isso, os estilistas estão procurando suas próprias saídas. E está se abrindo um abismo entre as marcas maiores e as marcas mais de nicho, além de um abismo entre Nova York e Londres, por um lado, e Milão e Paris, por outro.

    Thakoon Panichgul, cujas roupas frequentemente são usadas por Michelle Obama, saiu da programação da semana de Nova York, tendo vendido a maior parte de sua marca à Bright Fame Fashion e decidido reinventar-se como marca "veja agora/compre agora", como fez a grife Bill Blass antes dele. Rebecca Minkoff está trabalhando em tempo integral e vai exibir sua coleção de primavera esta semana; a coleção de outono será mostrada com hora marcada.

    Em Londres, Matthew Williamson também abandonou a programação oficial e está aderindo ao modelo "direto ao consumidor". Thomas Tait, que recebeu o prêmio LVMH para jovens estilistas, trocou um desfile por uma apresentação. Tom Ford, que nos últimos anos apresenta suas criações na London Fashion Week, começou a fazer experimentos com opções diferentes quando levou seu desfile de outono 2015 a Los Angeles na semana do Oscar. Embora tivesse dito originalmente que faria apresentações pequenas em Nova York na semana que vem, ele anunciou recentemente que vai seguir o exemplo da Burberry e fazer desfiles de moda masculina e feminina juntos em setembro, no mesmo dia em que as roupas chegarem às lojas. Ele está fazendo um hiato nesta temporada.

    "Convivemos com um calendário de moda e um sistema de moda que pertencem ao passado", ele sisse.

    Diane von Furstenberg não tem paciência com a ideia de apego ao passado. "Eles vão perceber que isto será melhor para todo o mundo", ela disse, notando que sua mudança nos desfiles foi concebida em parte para testar seus próprios princípios. A abordagem de "experiência" tem a vantagem adicional de impor uma interação com as roupas, em vez de apenas deixar o espectador vê-las passar rapidamente em seu telefone. "Estou pensando seriamente em fazer um desfile relevante ao consumidor em setembro", acrescentou.

    Ela já está vendendo um grupo seleto de itens diretamente da passarela. A Ralph Lauren já faz isso, assim como a Versace e a Moschino (embora nenhuma delas até o ponto em que Burberry e Tom Ford o farão em setembro). A linha Versus Versace já passou para o modelo ver agora/comprar agora. Enquanto isso, a grife parisiense Vêtements disse que em 2017 vai passar seus desfiles para janeiro e julho e procurar entregar roupas da própria temporada no mês seguinte aos desfiles, com isso criando sua própria linha do tempo e deixando a situação ainda mais confusa.

    "A situação vai piorar antes de melhorar", opinou Downing, da Neiman Marcus.

    Esse é o risco que encerra essa angústia "quando expor ou quando não" do mundo da moda. A ironia é que, em meio à tensão e às mensagens ambíguas, a consumidora só pode esperar e olhar seu smartphone, torcendo para que a espera para alguma resolução não seja como esperar por Godot.

    Tradução de CLARA ALLAIN

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024