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    Antes de cancelar peça acusada de racismo, mostra propôs troca a autor

    GUSTAVO FIORATTI
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    19/02/2016 02h04

    Em dezembro, antes de ter sua polêmica peça "Exhibit B" cancelada pela MITsp (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo), o artista sul-africano Brett Bailey recebeu da curadoria do festival –que chega à sua terceira edição no dia 4 de março– a proposta de substituir a montagem por outra de sua autoria, a ópera "Macbeth".

    "Exhibit B" ficou conhecida internacionalmente após protestos em Londres e Paris, em 2014. O espetáculo –proposta antirracista, segundo o artista– faz uma releitura do que foram os zoológicos humanos que existiam na Europa no século 19, com atores interpretando negros em situação de opressão.

    O espetáculo estava sofrendo ameaça de boicote de movimentos negros no Brasil desde junho do ano passado, quando Bailey veio ao país para selecionar intérpretes da versão nacional, bem como o lugar onde a performance seria exibida.

    Sofie Knijff/Divulgação
    Encenação de 'Exhibit B' no Barbican Centre, em Londres
    Encenação da performance 'Exhibit B', do sul-africano Brett Bailey, no Barbican Centre, em Londres

    Para o autor, ao retirar a obra da programação, a MITsp cedeu à pressão exercida por ativistas. "O espetáculo foi cancelado porque eles estavam com medo de publicidade negativa", ataca ele. "Os ativistas pressionaram os patrocinadores do festival para que fosse cancelado, e essa pressão se tornou muito grande", disse à Folha.

    "Em dezembro, eles me contataram para dizer que os ativistas ameaçavam a realização da obra e que os patrocinadores estavam ficando descontentes", acrescenta.

    Sua afirmação contraria a versão da curadoria do MITsp, de que o espetáculo foi cancelado por falta de verba. O festival, porém, assume que a substituição foi considerada.

    "Brett é desconhecido no Brasil, talvez fosse legal criar um contexto para trazer 'Exhibit B'. Surgiu então a possibilidade de 'Macbeth', trabalho dele sobre a escravidão no Congo", diz Antônio Araújo, curador da mostra.

    O recuo foi feito porque a MITsp havia sido informada de que grupos ativistas ameaçavam "usar o próprio corpo" contra quem tentasse entrar no teatro. "E eu não bancaria o risco de ver a polícia reprimindo negros com violência. Acho que essa é uma das tragédias desse país. E ter qualquer chance de ameaça policial contra negros era um limite para mim", diz o curador.

    Para ele, a substituição de "Exhibit B" por uma peça menos polêmica do autor, bem como a ideia de uma residência do artista e de seminários, criaria "uma maneira de as pessoas, inclusive as vozes contrárias, conhecerem o trabalho dele para perceber que ele é um cara engajado nesta causa, e não o contrário".

    VAIVÉM

    Araújo diz que a história não acabou aí, no entanto. Quando souberam da substituição, os 28 atores brasileiros selecionados para "Exhibit B" reivindicaram o direito de realizar a obra, o que foi levado em consideração pela curadoria, que então retomou a ideia de trazer a peça.

    O corte derradeiro, diz o curador, foi determinado pela redução orçamentária e pela alta do dólar. Os cancelamentos atingiram dez dos 20 espetáculos previstos inicialmente.

    A organização do festival ainda expôs a questão a Eduardo Suplicy em reunião para pedir apoio financeiro.

    O secretário de direitos humanos do município se dispôs a dialogar com outras pastas, como a de educação, até o momento em que o espetáculo foi cancelado.

    Franck Pennant/AFP
    Montagem de 'Exhibit B' no festival de Avignon, na França, em 2013
    Atriz durante montagem da performance 'Exhibit B' no festival de Avignon, na França, em 2013

    O resultado foi comemorado entre ativistas, que contestam a versão da MITsp, publicada pela Folha no último dia 2. "Saiu uma reportagem mentirosa informando que o espetáculo foi cancelado por falta de verba, quando na verdade o espetáculo já estava sendo ensaiado", diz texto publicado pela Frente Negra de Erradicação do Racismo em sua página no Facebook. Procurado pela reportagem, o grupo não se pronunciou.

    Segundo o texto, "Exhibit B' foi cancelado "devido à pressão da população negra brasileira, que não viu coerência em um espetáculo que reproduzia as formas de tortura sofridas pelos seus ancestrais negros escravizados nesse país."

    SABOTAGEM

    Em uma passagem pelo Rio, em outubro, Brett Bailey participou de um debate no festival de teatro Tempo. Ele conta que a apresentação preparada por ele foi sabotada por ativistas, que se impuseram aos gritos para não permitir que o artista falasse sobre seu trabalho.

    Antes de sua peça ser cancelada, Brett também recebeu da MITsp a notícia de que o espaço escolhido para a apresentação em São Paulo não estava mais disponível. À Folha, os curadores da mostra contam que se tratava do Tusp, teatro mantido pela USP.

    "Disseram que, por decisão de funcionários ligados ao movimento negro, o Tusp era contrário à realização do espetáculo naquele edifício", disse o diretor administrativo da MITsp, Guilherme Marques.

    Procurado pela reportagem, o curador do espaço, Ferdinando Martins diz que "houve um mal-entendido".

    "Quis dizer que deveríamos sentar todos para ver como é que poderia ser feito. Eu era favorável à apresentação da peça", defende-se.

    Segundo Martins, o Tusp já havia até pensado, junto à curadoria da MITsp, em estratégias para proteger o elenco de possíveis agressões. "Pensamos em colocá-los em um hotel mais próximo ao teatro. Eles teriam a recomendação de não andar pela cidade durante a mostra", conta ele.

    No ano passado, a peça "A Mulher do Trem", do grupo Os Fofos Encenam, também teve uma sessão cancelada após pressão de ativistas. A montagem, que fazia uso da técnica de máscara negra, a blackface, recurso condenado pelos movimentos antirracistas, acabou sendo modificada pela companhia.

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