• Ilustrada

    Saturday, 04-May-2024 15:22:07 -03

    crítica

    Polêmica racial encobre a ruindade do longa épico 'Deuses do Egito'

    RICARDO CALIL
    CRÍTICO DA FOLHA

    27/02/2016 02h12

    "Deuses do Egito" é mais branco que o Oscar 2016. E, nesse caso, há um agravante: o filme se passa em um país do norte da África, e não na festa da firma em Los Angeles.

    O "physique du rôle" do elenco principal parece mais apropriado para lenda celta do que para Egito antigo: tem escocês (Gerard Butler), inglês (Rufus Sewel), australianos (Brenton Thwaites, Geoffrey Rush) –todos brancos.

    A ideia de diversidade de Hollywood parece ser dividir papeis de africanos entre atores do Reino Unido –abrindo exceções para o loiro dinamarquês Nikolaj Coster-Waldau e para o americano (e negro) Chadwick Boseman.

    Esse branqueamento histórico foi motivo de fortes críticas nos Estados Unidos. A ponto de a produtora Lionsgate e o diretor Alex Proyas (filho de gregos nascido no Egito e radicado na Austrália) terem de vir a público pedir desculpas.

    Eles estavam apenas se apoiando em uma velha tradição hollywoodiana: Elizabeth Taylor foi "Cleópatra" (1963), Charlton Heston encarnou Moisés em "Os Dez Mandamentos" (1956) e outro dia Jake Gyllenhaal se tornou o "Príncipe da Pérsia" (2010).

    Ou seja: Hollywood não mudou. E não percebeu que o mundo à volta dela sim. "Deuses do Egito" e o Oscar 2016 vieram mostrar, com o perdão do trocadilho, que isso não passará mais em branco.

    Para "Deuses do Egito", a polêmica do branqueamento teve um efeito colateral positivo: tirou o foco da ruindade do filme –que, após meses de ataques na imprensa e nas redes sociais, estreou nesta semana.

    No Brasil, ele chega com outra vantagem: o fato de estrear menos de um mês depois de "Os Dez Mandamentos" –e possibilitar a comparação com a produção brasileira– faz o filme americano parecer menos ruim do que é.

    O Egito hollywoodiano está mais para mitologia grega do que para Velho Testamento, mais para o filme "300" do que para novela editada da Record.

    Aqui, os deuses são gigantes que circulam entre os homens e sangram ouro fundido. De resto, são cruéis, ciumentos e vingativos como simples mortais. Prestes a se tornar rei, o deus Horus (Nikolaj Coster-Waldau, de "Game of Thrones") tem seus olhos arrancados por seu tio, o deus da escuridão Set (Gerard Butler, de "300"), que usurpa o trono e bane o sobrinho do reino.

    Para tentar recuperar a coroa, Horus contará com a ajuda de Bek (Brenton Thwaites), ladrão de bom coração dedicado a salvar sua amada, que foi mortalmente ferida e só poderá ser revivida por um rei.

    Essa trama é uma desculpa para uma confusa orgia de efeitos digitais de gosto duvidoso, de lutas grandiloquentes e intermináveis, de diálogos involuntariamente cômicos, da exposição fetichista (e homoerótica) de torsos masculinos.

    É um Egito que parece saído de uma viagem de ácido de Liberace, o cantor americano conhecido pela extravagãncia.

    Ok, não faz sentido pedir que um filme como "Deuses do Egito" se guie pelo conceito do "menos é mais". Mas o excesso de tudo (ação, duração, computação gráfica) torna essa suruba cinematográfica tediosa após 15 minutos.

    Faltam a "Deuses do Egito" não apenas alguns respiros, mas, acima de tudo, a capacidade de rir da própria megalomania, de se assumir como um entretenimento kitsch.

    Só um ator sabe brincar com a fantasia tresloucada do filme: Chadwick Boseman, que faz do sábio deus Toth uma versão egípcia da drag queen Ru Paul. Curiosamente ou não, é o único ator não-branco do elenco principal.

    O diretor Alex Proyas (de "O Corvo") já pediu desculpas pelo branqueamento de "Deuses do Egito". Agora falta vir a público para pedir perdão pelo resto do filme.

    DEUSES DO EGITO
    (Gods of Egypt)
    DIREÇÃO: Alex Proyas
    ELENCO: Nikolj Coster-Waldau, Gerard Butler, Chadwick Boseman
    PRODUÇÃO: EUA, 2016, 12 anos
    QUANDO: em cartaz

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024