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    Única tela de Bosch no Masp ficou de fora da festa de 500 anos do pintor

    FABIO CYPRIANO
    ENVIADO ESPECIAL A 'S-HERTOGENBOSCH

    21/03/2016 02h10

    A única pintura atribuída a Hieronymus Bosch (c. 1450""1516) do Masp (Museu de Arte de São Paulo), "As Tentações de Santo Antão", foi excluída das comemorações dos 500 anos da morte do mestre holandês em seu país natal. Não foi só lá.

    No mês passado a editora alemã Taschen publicou "Hieronymus Bosch. Complete Works" (obra completa), e o livro, supervisionado pelo próprio fundador da companhia, Benedikt Taschen, tampouco elenca a pintura do Masp.

    Há pelo menos dez anos, pairam suspeitas sobre a atribuição da pintura, que entrou para o museu em 1954. Atualmente ela está em um dos cavaletes no segundo andar, como um Bosch, sem apresentar a dúvida de sua autoria.

    Desde 13 de fevereiro, o Museu de Noordbrabants, em 's-Hertogenbosch ou Den Bosch, como a cidade onde o holandês nasceu é mais conhecida, sedia "Hieronymus Bosch, Visões de um Gênio".

    Divulgação
    Detalhe da parte central do tríptico 'As Tentações de Santo Antão', obra no Masp
    Detalhe da parte central do tríptico 'As Tentações de Santo Antão', obra de Bosch no Masp

    Trata-se da maior mostra já realizada sobre sua obra, com 42 peças: 36 de Bosch, das 44 espalhadas pelo mundo, e outras seis pinturas que pesquisadores acreditam terem sido realizadas por assistentes.

    "Começamos a organizar a mostra há nove anos e expomos 17 das 24 pinturas que podem ser atribuídas a ele", disse o diretor do museu, Charles de Mooij, no sábado (12).

    Para os festejos dos 500 anos, foi criado, em 2009, o Research Bosch and Conservation Project (projeto Bosch de pesquisa e conservação).

    "A obra do museu brasileiro não figura entre os 24 Bosch no mundo", afirma Mooji à Folha. O diretor, contudo, disse que "gostaria que o Projeto Bosch analisasse, em breve, a pintura do Masp".

    Até o momento, os pesquisadores identificaram 24 pinturas e 20 desenhos, sendo que 19 deles estão em exibição no museu de Bosch.

    Para a exposição, que custou 6,7 milhões de euros (cerca de R$ 25 milhões), nove pinturas foram restauradas, entre elas "A Nave dos Loucos", uma das mais conhecidas, que pertence ao Louvre.

    Mas o maior mérito foi descobrir que a versão de "As Tentações de Santo Antão" de um museu do Kansas (EUA), que acreditava-se ter como autor um aluno de Bosch, na verdade foi feita por ele.

    A mostra, programada até 8 de maio, é um fenômeno: 300 mil ingressos foram vendidos pela internet, esgotando a lotação inicial. Por isso, o museu ampliou duas vezes por semana o horário de visita e ofertou mais 50 mil entradas.

    Em maio, grande parte das obras segue para o Museu do Prado, em Madri, que tem em exibição permanente "O Jardim das Delícias". A pintura, provavelmente a obra mais conhecida do holandês, não foi emprestada a Den Bosch.

    ATUALIDADE

    Bosch foi contemporâneo dos mestres renascentistas, como Da Vinci e Michelangelo. Como seguia o estilo medieval de pintura, sem perspectiva ou ponto de fuga, não foi tão valorizado pela história da arte como os italianos.

    Contudo, com seu imaginário sofisticado, que mescla seres humanos e objetos, além de criar narrativas complexas –só no "Jardim das Delícias" há 400 personagens–, Bosch chega ao século 21 mais próximo da produção contemporânea que os racionalistas da Renascença.

    Ao contrário de Michelangelo e Da Vinci, pouco se sabe da vida de Bosch ou Hieronymus Anthonissen van Aken, seu nome de batismo. Não é certo se saiu de sua cidade natal, apenas que lá obteve amplo reconhecimento, já que fazia parte de uma fraternidade católica de devoção à virgem Maria que só era frequentada pela elite local.

    A fraternidade, que agora mistura católicos e protestantes e tem como membro o rei da Holanda, Willem-Alexander, está aberta ao público por conta dos comemorações dos 500 anos. Ela está incluída em um percurso dos locais por onde o artista circulou.

    Figuras de suas pinturas também ganharam tridimensionalidade na pequena vila medieval, mas nada se iguala ao universo surreal que Bosch levou às telas.

    OUTRO LADO

    Em nota, assinada por Luciano Migliaccio, curador-adjunto de arte europeia do Masp (Museu de Arte de São Paulo), a instituição afirma que "há razões para considerar o painel ["As Tentações de Santo Antão"] do Masp como uma versão ao menos em parte autógrafa, saída do ateliê do mestre [Bosch]."

    Isso significa que, como era comum na época do mestre holandês, a obra pode ter sido criada na oficina do artista, que teria pintado parte dela, enquanto seus assistentes realizaram outra parte.

    Segundo Migliaccio, a pintura do Masp seria uma versão "da parte central do tríptico das 'Tentações de Santo Antão', assinado por Bosch, hoje no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa".

    Entre os elementos que podem apontar para a autenticidade do trabalho no museu paulista, na comparação com a peça em Portugal, o curador afirma que "ambos painéis foram realizados em madeira de carvalho e as tábuas foram juntadas por encaixes em forma de cauda de andorinha, como era costume nos Países Baixos no final do século 15 e no começo do 16".

    Contudo, apesar de constar no catálogo que a obra foi feita por Bosch, a opinião do museu não é definitiva: "Optou-se por não colocar em dúvida a atribuição de autoria com a qual a obra entrou no acervo, na espera de novos estudos e análises mais aprofundadas".

    Leia a íntegra da nota:

    Há razões para considerar o painel do Masp como uma versão ao menos em parte autógrafa, saída do ateliê do mestre, da parte central do tríptico das Tentações de Santo Antão, assinado por Bosch, hoje no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa. A obra é assinada e a assinatura parece antiga.

    Foi considerada autógrafa por numerosos especialistas. Max Jacob Friedländer a inseriu como tal no seu repertório da antiga pintura dos Países Baixos de 1937. Sua opinião foi seguida por Charles De Tolnay, Ludwig von Baldass, Roberto Longhi, Carlo Ludovico Ragghianti, Marie Louise Lievens-De-Waegh e Ettore Camesasca.

    Análises científicas realizadas no laboratório do Cecor da UFMG em 1998 em ocasião de uma pesquisa de mestrado na Unicamp financiada pela Fapesp evidenciaram diversos elementos materiais em comum no tríptico de Lisboa e na pintura de São Paulo, reforçando a hipótese de uma relação particular entre os dois painéis dentro das outras numerosas versões conhecidas da composição.

    Ambos painéis foram realizados em madeira de carvalho e as tábuas foram juntadas por encaixes em forma de cauda de andorinha, como era costume nos Países Baixos no final do século 15 e no começo do 16, confirmando que é possível pensar que foram executados nos mesmos anos.

    No entanto, na obra paulista são visíveis numerosas correções em figuras já acabadas, o que não condiz com a ideia que seja apenas uma réplica antiga a partir do retábulo lisboeta.

    Por estas razões no catálogo do Masp optou-se por não colocar em dúvida a atribuição de autoria com a qual a obra entrou no acervo, na espera de novos estudos e análises mais aprofundadas.

    Luciano Migliaccio, curador adjunto de arte europeia

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