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    Matheus Nachtergaele e Paulo Betti resgatam histórias pessoais em peças

    GUSTAVO FIORATTI
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    24/03/2016 02h55

    Quando tinha 16 anos, Matheus Nachtergaele recebeu uma pasta azul, "dessas com elástico". Dentro havia poemas de Maria Cecília Nachtergaele, sua mãe, que se matou aos 22 anos, em 1968, no dia em que o filho foi batizado, aos três meses de idade.

    O ator traz essa história ao Festival de Curitiba, que começou nesta quarta.

    Nachtergaele expõe o material que guardou por 30 anos na peça "Processo de Conscerto do Desejo", grafado assim mesmo, com "sc", provocando confusão: estaria ele falando sobre um concerto, relativo à musica, ou um conserto, um reparo?

    Marcos Hermes/Divulgação
    Matheus Nachtergaele em "Processo de Conscerto do desejo"
    Matheus Nachtergaele em "Processo de Conscerto do Desejo"

    São as duas coisas, diz. "Quero consertar meu desejo com poesia em um concerto". Ele relaciona o termo "desejo" a um processo de autoconhecimento. "Tudo o que minha mãe escreveu, organizei em uma espécie de dramaturgia extremamente íntima, afetiva e explosiva".

    "Não procuro dar contornos nítidos ou realistas à história de Maria Cecília, procuro fazer uma operação catártica onde digo seus textos quase em primeira pessoa. Digo 'quase' porque eu não sou ela, apesar de sê-la em meus genes, meus traços de rosto e caráter e de saber que os pais vivem em seus filhos. Exponho a obra dela enquanto, ao vivo, descubro quem é minha mãe, a cada dia, a cada récita emocionada", diz.

    Matheus não está sozinho no resgate deste traço documental, que remete às mostras de Sophie Calle, artista que em 2009 trouxe ao Sesc Pompeia exposição baseada na carta de um ex-namorado.

    Há ao menos outras três peças nesta linha no Festival.

    Paulo Betti, por exemplo, se dedica a criação similar, em que expõe textos autobiográficos, focando a adolescência e a infância. Em "Autobiografia Autorizada", dirigida por ele e Rafael Ponzi, recorre às suas anotações. "Minha fixação pela memória da infância e adolescência talvez mereça ser compartilhada no intuito de provocar emoção, riso, entretenimento e entendimento", diz.

    Filho de uma camponesa analfabeta, mãe de 15 filhos (Paulo é o décimo quinto), em seu texto o artista passa por histórias sobre a origem da família, incluindo a figura do avô, imigrante italiano.

    Sua história, de quebra, traz à tona "um Brasil rural que fazia um trânsito para o Brasil industrial", o que se refletiu na transformação de Sorocaba (SP), onde nasceu.

    Há uma estrutura que não muda na peça. Ele mostra documentos, fotos, a imagem do passaporte do avô. Mas há transformações de uma sessão à outra, que deriva de um processo psicanalítico que se dá mesmo em cena.

    Divulgação
    Paulo Betti durante a peça 'Autobiografia Autorizada'
    Paulo Betti durante a peça 'Autobiografia Autorizada'

    A figura materna volta ao centro da questão em "Mamãe", espetáculo em que o ator Alamo Faco narra uma jornada de cem dias ao lado de sua mãe, até a morte dela, em 2010.

    E, já exibida em São Paulo, "Why the Horses" também recorre ao depoimental. Mas as histórias de Maria Alice Vergueiro se cruzam com a sensação de proximidade com a morte da própria atriz, que encena o próprio funeral.

    MEXER COM A CIDADE

    "A gente procurou ao máximo fazer o que pôde para criar um diálogo com a cidade e também com o cenário artístico local Marcio Abreu curador do Festival de Curitiba

    Estreantes na curadoria do Festival de Curitiba, o diretor Marcio Abreu e o ator e diretor Guilherme Weber anunciaram em fevereiro novos rumos para o evento. Deixaram explícito que a mostra, na 25ª edição, pretende mexer mais com a cidade.

    A palavra "mexer" aqui não faz metáfora, tampouco faz propaganda sobre uma hipotética comoção pública. Os curadores dizem que pretendem trazer ao festival ideias que estreitem relações com a cidade, com o espaço urbano e o cenário artístico.

    Um bom exemplo é "Orgia ou de como os Corpos Podem Substituir as Ideias", adaptação dos diários do escritor argentino Túlio Carella, encenada em 2015 no parque Trianon, em São Paulo. No festival, a peça ocupa arredores do edifício Anita, em um largo no centro da cidade. O espetáculo se apropria diretamente da paisagem.

    A ideia de estreitar laços levou ao resgate de um projeto conhecido de artistas curitibanos, o "Ilíadahomero". Criado em 1999 por Octavio Camargo, encena os 24 cantos da "Ilíada" de Homero.

    Os cantos são narrados sempre por um ator, com muito poucos recursos em cena.

    Haverá uma maratona com todos os cantos reunidos, ocupando uma sequência de 24 horas seguidas de espetáculos, na passagem do dia 2 para o dia 3.

    Há ainda outros clássicos na grade do Festival de Curitiba, com destaque para encenações de Shakespeare, cuja morte faz 400 anos.

    Nesta quinta, o festival apresenta "Hamlet - Processo de Revelação", de Adriano e Fernando Guimarães. Na montagem, um dramaturgo, Emanuel Aragão, tenta reconstruir a narrativa da peça em um diálogo com a plateia.

    De Shakespeare, há encenações de "Macbeth" e "Medida por Medida", com o mesmo elenco. Estão em cena Giulia Gam, Lui Vizotto, Thiago Lacerda e Marco Antônio Pâmio, entre outros.

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    MINHA VIDA Trechos de peças autobiográficas do festival

    "Um dia, roubei giz na sala de aula, as lousas eram pretas, hoje os quadros negros são verdes, quando mudou achávamos que era por causa da ditadura militar, que trocou os quadros de negros pra verdes pra imitar a farda do Exército" ("Autobiografia Autorizada", com Paulo Betti)

    "Vamos comemorar com bolo e champanhe/ isso de nos amarmos como antigamente/ se usava amar, no gênero romântico./ Vamos galhardamente comemorar/ porque é notório que não vai durar/ como durava antigamente" (Poema da mãe de Matheus Nachtergaele, que ele mostra em cena da peça "Processo de Conscerto do Desejo")

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    DESTAQUES DO FESTIVAL

    Mostra acontece até o dia 3 de abril em diversos horários. Veja programação completa no site oficial.

    "ELES NÃO USAM TÊNIS NAIQUE"

    Com direção de Isabel Penoni, o espetáculo é ambientado em uma favela do Rio de Janeiro e narra o reencontro de um pai com uma filha. Ele oi traficante nos anos 1980 e ela é uma jovem traficante nos dias atuais

    » Dias 26, às 21h, e 27, às 19h

    "MORDEDORES"

    Performance para concebida por Marcela Levi e Lucía Russo para plateia com poucos lugares. Em uma arena, os intérpretes exibem uma coreografia em que eles mordem uns aos outros. Para o grupo, o jogo expõe "a vitalidade do contato sujo com outros corpos"

    » Dia 24, às 21h

    "BATUCADA"

    Performance de Marcelo Evelin criada com intérpretes sem exeperiência de atuação e que recria as formas do carnaval, das paradas militares, das manifestações.

    » Dia 24, às 21h

    "MORTE ACIDENTAL DE UM ANARQUISTA"

    Um homem com vocação para assumir personalidades alheias é detido por falsa identidade. Na delegacia, ele diz ser um juiz na investigação de um caso misterioso, sobre a morte de um anarquista.

    » Dias 2, às 21h, e 3/4, às 19h

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