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    Crônica

    Cuba balança ao som dos Rolling Stones

    GUILHERME GENESTRETI
    EM HAVANA

    28/03/2016 02h00

    Não é mais difícil ouvir "Sympathy for the Devil" nas rádios de Cuba. Outrora "agentes da decadência capitalista", proibidos igual o chiclete pelos revolucionários barbudos que tornaram a ilha um enclave comunista sob o sol caribenho, os Rolling Stones estão por toda a parte na histórica semana que começou com a visita de Obama e terminou com um megashow gratuito para 300 mil pessoas -a estimativa tem boa dose de chute.

    Ainda assim, insista muito para que o motorista de seu taxi coletivo, aquelas fumacentas charangas coloridas, não queira trocar a simpatia pelo demônio de Jagger pelo batidão do reggetón "Hasta que se Seque el Malecón", hit local de Jacob Forever que faz alusão ao calçadão costeiro de Havana.

    É fato que poucos cubanos sabem enumerar mais do que três canções dos Stones. Nem mesmo o biólogo Emmanuel Reyes, 59, bigodão grisalho sobre o rosto bronzeado que, nos anos 1970, tinha de recorrer a cassetes piratas que compilavam "Los Rolling" com os rivais "Los Bítles".

    "Gosto de 'Satisfacto'. É assim que fala?", indaga Reyes na longuíssima fila para um dos poucos banheiros dispostos para o show: um box de metal portátil, fincado sobre um ralo na fossa por onde se urina.

    "Muitas músicas eu nem sabia que eram dos Rolling", diz a estudante de arquitetura Karla Alvarez, 20, de adesivo com o famoso logotipo da boca colado numa genérica camiseta preta. "Preferia que fosse Metallica ou Kiss", diz o produtor artístico Dyango Vives, 55. "Vim porque é histórico. E raro."

    RUM DE CAIXINHA

    Ainda faltam cinco horas para o começo da apresentação, às 20h30, e uma multidão já toma a o amplo e esburacado campo da Ciudad Deportiva, complexo poliesportivo próximo à Plaza de la Revolución (a que tem prédio com contorno de Che Guevara na fachada) e cercado de casebres pobres enfileirados numa rua de terra: nas lajes, improvisa-se um camarote.

    Sentados na grama, adolescentes com jeitão emo, outro com moicano verde e jaqueta de couro sob o sol de mais de 30 graus, gringos jogando baralho e famílias com crianças pequenas davam ao show uma cara democratizada, quase uma Virada Cultural sem o cheiro do vinho químico. Proibida a venda de bebidas lá dentro, a solução alcoólica era misturar rum de caixinha com refrigerantes locais.

    Os Stones satisfizeram os cubanos —e os milhares de estrangeiros— com o mesmo receituário dos demais shows feitos na turnê Olé, que rodou o Brasil e outros países da América Latina: abriram com "Jumpin' Jack Flash", emendaram com "It's Only Rock N' Roll", etc.

    Ao som de "Angie", cubanos dançaram de rosto colado. Uma alemã entrou numa roda de nativos descamisados e rebolou com "Start me Up". Um casal permanecia impassível mesmo com a dançante "Brown Sugar"; ela até olhou o relógio. Faltando 20 minutos para o fim, parte do público já tinha esvaziado o local. Apoteose, "Satisfaction", a única realmente cantada em massa, foi esticada ao dobro.

    FESTA PARTICULAR

    Na véspera do show, circulavam rumores de que os Stones fariam uma apresentação menor em algum clube de jazz. A banda havia desembarcado há algumas horas e já estava alocada em Miramar, área de mansões erguidas na época de Fulgencio Batista, ditador deposto pela Revolução, em 1959. Antes de Fidel, negros eram proibidos de circular ali, conta um dos passageiros, também negro, no abarrotado ônibus que corta a cidade.

    Num país com compreensível tradição zero em receber shows desse porte, tietar rockstars não é coisa assim tão difícil: nenhum fã tinha ousado ficar de tocaia no hotel dos Rolling Stones: um cinco estrelas que em nada lembra o maltratado -e fotogênico– centro de Havana, distante dali, com aqueles seus prédios arruinados feito uma zona de guerra tropical.

    "Não vamos tocar em nenhum lugar hoje. Se fôssemos, eu te contava, cara", diz à Folha o baixista dos Stones, Darryl Jones, e estende a mão esquerda para cumprimentar, encerrando o papo no lobby do Meliá Miramar. Ao fundo, seis cantores uniformizados estalam os dedos enquanto entoam "Let it Be", clássico dos Beatles, para os turistas.

    "Hoje só vamos curtir", diz a curvilínea Sasha Allen, vocalista de apoio (é ela quem divide os microfones de "Gimme Shelter" com Mick Jagger), trajando vestido curto e apertado e segurando-se como podia no corrimão para não tropeçar na escada que levava a vans na porta do hotel: os olhos meio crispados e a cabeça vacilante entregam que já está um pouco calibrada.

    Organizaram uma festa fechada para os Stones em Vedado, bairro próximo. Meia dúzia de policiais guardam a porta lateral de uma bem-cuidada casa noturna. Ronnie Wood está lá dentro. O lacônico Charlie Watts não quis ficar muito: à meia-noite, o baterista sai e entra depressa numa Mercedes preta.

    Vinte minutos depois, chega Mick Jagger, blazer escuro sobre camisa branca. "We love you", grita a argentina. "Heeeeey", ele acena sorridente e some atrás da fileira de policiais. Nenhum sinal de Keith Richards.

    SÓ ROCK N' ROLL?

    No noite seguinte, durante o show, Jagger lembrou a proibição a ouvir Stones em Cuba. "Mas finalmente os tempos estão mudando", disse, em espanhol.

    Os sinais da mudança estão ali, ancorados nos navios de cruzeiro que começam a preencher o horizonte do porto de Habana Vieja e que têm tudo a ver com a invasão do rock na ilha governada por Raul Castro.

    Segundo o diário digital espanhol "El Confidencial os estimados US$ 7 milhões para trazer a banda inglesa e seus 61 contêineres à ilha comunista foram custeados pela fundação Bon Intenshon, braço filantrópico de um fundo de investimento sediado no paraíso fiscal de Curaçao e de olho no potencial turístico de Cuba. Não é mesmo só rock n' roll.

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