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    CRÍTICA

    Escritos de Sebastião Uchoa Leite são repletos de contrapoderes

    LEONARDO GANDOLFI
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    02/04/2016 03h38

    Sebastião Uchoa Leite, morto em 2003, é um poeta de destaque no cenário da literatura brasileira recente. "Poesia Completa" traz os dez livros que publicou a partir de 1960, acrescidos de poemas dispersos. Além de dar uma visão de conjunto, a reunião permite que novos leitores entrem em contato com livros decisivos e há tempo esgotados, como "Antilogia" (1979), "Isso Não É Aquilo" (1982) e "A Ficção Vida" (1993).

    O universo dessa poesia lança mão de tipos conhecidos: vampiros, detetives, ilusionistas, assassinos. Em todos eles, está em jogo uma dualidade que não se oferece de forma estanque, sendo impossível separar quem persegue de quem é perseguido. As figuras do médico e do monstro –citadas pelo poeta– resumem bem essa condição.

    Alexandre Campbell/Folhapress
    ORG XMIT: 184801_0.tif O poeta e tradutor Sebastião Uchôa Leite.
    O poeta e tradutor Sebastião Uchôa Leite, morto em 2003

    Marcante também é o encontro entre leitor e autor, personagens que em poesia, desde Baudelaire, têm uma fraterna e tensa relação. Na obra de Sebastião, tal conversa é atualizada de forma irônica por meio de alguns recursos. Por exemplo, desconcertantes conselhos ("Se vais encontrar o fraco/ Não te esqueças/ De levar o chicote").

    Seguindo esse jogo, os poemas tocam os limites da ficção, a partir da dinâmica envolvendo antídoto e envenenamento. Com isso, possíveis diferenças entre o texto e o fato acabam se esfumaçando, tanto que, em certo momento, o poeta anota: "Há aqui um remoto/ Veneno inoculado".

    Tal inoculação produz metamorfoses. Uma delas, a aproximação entre a voz do poema e a figura do autor. É assim que, brincando com o método cartesiano, o poeta diz: "Eu mordo/ Logo posso". Em outras palavras, ao se tornar personagem de si mesmo, ele se vê ao mesmo tempo como vítima e algoz.

    Usando o verso curto e a prosa, o poeta trabalha com tópicos recorrentes da tradição moderna –como fingimento e antilirismo– menos para confirmá-los do que para deslocá-los. Uma voz incógnita, então, se faz ouvir, espécie de "infra-herói" com "vários contrapoderes". Entre eles, está uma sorrateira e espirituosa habilidade para a apropriação do alheio.

    Nesse sentido, os melhores poemas de Sebastião dialogam tanto com paradigmas construtivistas quanto com modos mais coloquiais e prosaicos. Mas sua poesia realiza isso sem se identificar inteiramente com nenhum desses modelos. Assim, ela acaba por redimensioná-los quando incorpora –temática e formalmente– a cultura pop, o cinema e os quadrinhos.

    Obra carregada de uma coerência múltipla, ela se movimenta com contradições e paradoxos. Em determinado texto, lemos: "Se você pensa/ que poesia é escamoteação,/ acertou". Noutro, a mensagem parece dizer o inverso: "Artistas perfeitos/ não precisam/ ocultar pistas". Para quem ficou com dúvida se as coisas devem ser escondidas ou não, outro poema de Sebastião responde. E essa resposta talvez seja uma das mais sensatas observações que a poesia contemporânea fez: "quem não se contradiz/ não diz/ radicalmente sério/ só o cemitério".

    *

    LEIA TRECHO
    Extraído de "Poesia Completa"

    Um cadáver e um dossiê:

    suspense italiano

    de eminentíssimos cadáveres.

    Eles afirmam

    que irão até o fim

    até chegar ao dedo

    que apertou o gatilho.

    Já se sabe o fim do filme:

    antes do cadáver

    já se conhecia o dedo.

    Só não se sabe como ocultá-lo.

    O único mistério é:

    Por que fazê-lo?

    Moral:

    Artistas perfeitos

    não precisam

    ocultar pistas."

    POESIA COMPLETA
    AUTOR Sebastião Uchoa Leite
    EDITORA Cepe/Cosac Naify
    QUANTO R$59,90 (512 págs.)

    LEONARDO GANDOLFI, poeta e professor de literatura portuguesa na Unifesp, é autor de "Escala Richter" (7letras).

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