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    Como a Coreia do Norte sequestrou um diretor para tentar melhorar seu cinema

    NATÁLIA PORTINARI
    DE SÃO PAULO

    08/04/2016 03h14

    Cortesia de Chin Eun-Hee
    Choi Eun-hee, Kim Jong-il e Shin Sang-ok em uma festa, em 1983
    Choi Eun-hee, Kim Jong-il e Shin Sang-ok em uma festa, em 1983

    Em 1977, o ditador norte-coreano Kim Jong-il (1941-2011) estava insatisfeito com sua produção de cinema estatal. Segundo ele, as narrativas dos filmes, que deveriam "permanecer na cabeça das pessoas" e ditarem "ideologias", eram arruinadas por "péssimos atores" e técnicas ultrapassadas.

    A solução? Sequestrar um dos mais aclamados diretores de cinema sul-coreanos, Shin Sang-ok, e sua mulher, Choi Eun-hee, a atriz mais importante da geração.

    Parece inacreditável, mas a estratégia não só foi levada a cabo como funcionou. Oito anos depois, muitos duvidaram quando, após dirigir sete filmes, Shin Sang-ok escapou para os Estados Unidos e disse que fora levado à força para o país da família Kim.

    "Quando você é sequestrado na Coreia do Norte, tem que fazer uma coletiva de imprensa dizendo que está feliz de estar lá", afirma o autor Paul Fischer, que reviveu a história do sequestro no livro "Uma Produção de Kim Jong-il", lançado há um ano nos EUA e agora no Brasil.

    De acordo com o governo da Coreia do Sul, 82 mil sul-coreanos foram sequestrados pela ditadura do Norte desde o armistício em 1953.

    A personalidade de Shin –e os dois anos e meio de tortura que relatou em seu próprio livro– explicam sua colaboração com o regime.

    Após produzir centenas de filmes no Sul nos anos 1960, seu estúdio enfrentava uma crise de financiamento e de qualidade. Megalomaníaco, Shin viu a oportunidade de reconstruir a carreira e tirar vantagem do sequestro. "Era um personagem muito complicado e narcisista", comenta Fischer.

    Shin morreu na Coreia do Sul em 2006. Sua mulher, Choi, que deu entrevista para o livro de Fischer, estrelou alguns filmes norte-coreanos, mas diz nunca ter se conformado com a separação dos filhos adolescentes e da escola de atuação que administrava.

    Cortesia de Choi Eun-Hee
    Choi Eun-Hee e Shin Sang-ok juntos no aniversário de Shin, em 1960
    Choi Eun-Hee e Shin Sang-ok juntos no aniversário de Shin, em 1960

    CINEFILIA

    Desde sua adolescência, Kim Jong-il acompanhava assiduamente as estreias de Hollywood, proibidas para os demais norte-coreanos. Seu gosto por cinema motivou a criação de uma rede internacional de contrabando de filmes, traficados para a península.

    Foi com o conhecimento da força das artes visuais que ele, durante o governo de seu pai, Kim Il-sung, inventou a máquina de propaganda estatal da Coreia do Norte. Após alguns anos, no entanto, frustrou-se com a qualidade de suas produções.

    "Todos os nossos filmes são cheios de lágrimas e soluços. Não ordenei que retratassem esse tipo de coisa", disse a Shin e Choi, em uma conversa gravada clandestinamente. "Não é arte", acrescenta —ciente de que precisava de "arte" para convencer seus compatriotas.

    É bem verdade que os filmes dirigidos por Shin talvez não se enquadrassem nessa definição. Seu maior sucesso no país foi "Pulgasari" (1985), versão de Godzilla em que um monstro devorador de ferro luta contra a monarquia feudal coreana para instaurar o socialismo (veja abaixo).

    Pulgasari

    NÃO É TRÍVIA

    Está errado quem descarta histórias como essa como "trívias bobas", adverte Fischer, que também é produtor de cinema. "De um lado, vemos as notícias sérias, de fome e campos de concentração. De outro tem as besteiras, de que Kim Jong-il inventou o hambúrguer e de que acham que ele não faz cocô. A única maneira de entender o país é juntar as duas coisas", afirma.

    As histórias absurdas são pistas de como o país continua assim há tanto tempo. "Há fome porque as pessoas têm um líder que acham que está certo o tempo todo."

    Essa fachada de maluquice também é uma estratégia proposital para disfarçar a crueldade da ditadura norte-coreana, diz o escritor.

    "Quando Kim Jong-un [atual ditador] executou seu tio, disseminaram um boato de que ele tinha sido comido por uma matilha de cães selvagens. Todo mundo sabe que isso não é verdade, mas como isso é a manchete maluca, foi repetido por aí. Se isso acontece várias vezes, a Coreia do Norte começa a parecer um lugar meio sem sentido. Nós deixamos de prestar atenção e eles conseguem se safar", afirma.

    Outra lição que se tira do livro de Fischer, segundo ele, é de como é construída a narrativa da história de uma nação.

    Uma Produção De Kim Jong-il
    Paul Fischer
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    "A Coreia do Norte é um bom exemplo de narrativa, porque ela não existia antes de 1945 e rapidamente se construiu uma ideia de nação e Estado. Então você enxerga como aquilo pode ser fabricado."

    Para Fischer, essa é a história de como uma performance, no sentido artístico, consegue justificar —e esconder— a violência.

    UMA PRODUÇÃO DE KIM JONG-IL
    AUTOR Paul Fischer
    TRADUTORA Alessandra Bonrruquer
    EDITORA Record
    QUANTO R$ 49 (434 págs.)

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    Pôster de "Pulgasari"
    Pôster de "Pulgasari"
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