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    Sucesso na Broadway, 'Hamilton' tem batalhas de MCs e elenco de minorias

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    DE NOVA YORK

    27/04/2016 02h00

    Era uma vez negros e hispânicos que discutiam economia e Constituição em batalhas de MCs (aqueles torneios de rimas improvisadas). E assim nasceram os Estados Unidos da América.

    Essa versão da história americana não está nos livros escolares, e sim há 14 meses em cartaz em Nova York, nove deles no mais badalado circuito teatral do mundo, a Broadway.

    Desde então, a peça (que mistura hip-hop e branquelos que estampam a efígie do dólar americano) enfileirou proezas. Ganhou, na semana passada, o Pulitzer de teatro. Barack Obama viu duas vezes, uma delas na Casa Branca.

    Lucra cerca de US$ 500 mil (R$ 1,8 milhão) por semana. Que assistir? Boa sorte. Está esgotado e sem previsão de novos ingressos, a não ser que você queira pagar a cambistas ao menos US$ 600 (R$ 2.150) por um dos piores assentos dos 1.319 disponíveis no Richard Rodgers Theatre.

    Uma crítica do "New York Times" sugere que, por uma entrada, talvez valha a pena "alugar os seus filhos".

    Das façanhas, a maior talvez seja fazer de Alexander Hamilton (1755-1804), o primeiro secretário do Tesouro americano –título tão sexy quanto declarar Imposto de Renda–, um fenômeno cultural.

    Isso é "Hamilton".

    HISTÓRIA

    Metade do monte Rushmore, a escultura na Dakota do Sul com rostos de quatro ex-presidentes, está na peça.

    E são negros que interpretam George Washington e Thomas Jefferson. Lin-Manuel Miranda, 36, criador e protagonista da peça que conta a ascensão e queda de Hamilton, é filho de porto-riquenho.

    Pouco conhecido no Brasil (fez uma ponta na série dramática "House"), o ator é tido como prodígio da Broadway.

    Já são dois sucessos. "In the Heights" ganhou um Tony em 2008 com sua fábula latina em Nova York. O segundo surgiu "ao acaso": ele queria levar um livro à praia. Escolheu "Hamilton", biografia de Ron Chernow.

    Aprendeu sobre o filho bastardo que migrou das Ilhas Virgens aos 17, após um furacão devastar sua cidade, em 1772. Alexander Hamilton redigiu um relato tão impressionante do desastre que empresários bancaram sua educação na América.

    "Quando ele faz um poema para se safar, pensei, 'isso é muito hip-hop", disse Lin-Manuel à "Rolling Stone". "Escrever versos sobre o quão terríveis são as circunstâncias em que você vive, e isso o livrar delas"¦ Foi o que Jay-Z [sobre crescer num conjunto habitacional do Brooklyn] e Lil Wayne [após perder parentes no furacão Katrina] fizeram."

    O elenco usa roupas que se espera da época. Mas é difícil imaginar o Hamilton "real" parodiando "Ten Crack Commandments" (os dez mandamentos do crack), do rapper Notorious B.I.G. (1972-97), em batalha contra ingleses pela independência americana.

    Ou o regresso de Jefferson da França (onde foi embaixador) cantando em ritmo de swing: "O que foi que eu perdi? Estive em Paris conhecendo todos os tipos de garota...".

    G7

    "Preciso de um Hamiltini para encarar tanta modernidade", brinca a branca Rita Jacobs, 48, no intervalo da sessão de três horas a que a Folha assistiu.

    A dona de casa da Carolina do Sul beberica o martíni no bar do teatro, de onde saem mais drinques temáticos, como o Duelo de Sangrias (vence o vinho tinto ou branco).

    "Gosto de negros, meu cabeleireiro é negro –e gay! Mas não estou acostumada a ver os 'pais fundadores' assim", diz Rita. Há apenas três atores brancos no palco –um é o rei da Inglaterra, que bate o pé pela "ingratidão" dos colonizados, num pop à Beatles.

    Hamilton integra o "G7" dos principais "pais fundadores" dos EUA, à frente da independência do país.

    Não vale tanto quanto Benjamin Franklin –este figura na nota de US$ 100, Hamilton está na de US$ 10. Também não é popular como George Washington, a cédula de US$ 1 e o nome da capital do país.

    Mas algo nele soava familiar a Lin-Manuel, que cresceu num bairro hispânico de Manhattan e estudou numa escola pública para superdotados no elegante Upper East Side.

    O criador "simpatiza com a condição de imigrante sem dinheiro e status" da criatura, diz à Folha a historiadora Rebecca Goetz, da Universidade de Nova York.

    Quando Hamilton canta que "chegou muito mais longe sendo mais esperto e trabalhando duro", evoca "a narrativa do homem pobre que se levanta sozinho, tão atraente nos EUA", diz Goetz.

    A epopeia teatral revigorou o personagem a tal ponto que o Departamento do Tesouro desistiu de substituir seu primeiro secretário nas notas de US$ 10. Cogitada como nova face, a ex-escrava abolicionista Harriet Tubman acabará na cédula de US$ 20, no lugar do ex-presidente escravocrata Andrew Jackson.

    Este verso é de "Hamilton", mas serviria também à ex-escrava Harriet, que talvez um dia ganhe o seu próprio musical: "Sou como meu país, jovem e faminto e despedaçado, mas não vou desperdiçar minha chance!".

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