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    Em obra mais recente, Ian McEwan usa música para alinhavar reviravoltas

    MANUEL DA COSTA PINTO
    COLUNISTA DA FOLHA

    30/04/2016 02h00

    André Toma
    O escritor britânico Ian McEwan
    O escritor britânico Ian McEwan

    Mais recente romance de Ian McEwan, "A Balada de Adam Henry" é uma história sobre fidelidade –conjugal, ética, religiosa– que o escritor britânico vai lentamente transformando, com sua aguda imaginação dos estados de consciência de suas personagens, numa espécie de música interior.

    A música, aliás, é elemento essencial na construção da trama, insinuando-se primeiramente em surdina, como detalhe de composição psicológica, para depois ser a própria matéria que enforma o romance, dissolvendo certezas morais e invertendo o acorde das decisões afetivas.

    Em cena, temos Fiona Maye, juíza do Tribunal Superior inglês que se ocupa de casos da Vara de Família: uma mulher temerosa de que o marido marroquino e muçulmano sequestre a filha do casal, levando-a para seu país natal; o destino das filhas de um casal de judeus ultraortodoxos que está se divorciando.

    São temas nos quais uma noção iluminista e laica de direito individual aparece em conflito com fundamentalismos religiosos, na multiétnica Londres. Com o agravante de que, por se tratar do destino de menores sujeitos à autoridade familiar, a juíza se vê diante da escolha de contrariar a fé dos litigantes –escolha mais moral do que legal, pois embasada na legislação inglesa para as crianças que dá o título original do livro ("The Children Act").

    Embora dramáticos e discutidos em suas minúcias jurídicas, tais casos seriam corriqueiros na Vara de Família em que Fiona atua –não fosse o fato de que também ela vive uma crise com o marido, Jack, prestes a ceder aos apelos de um caso extraconjugal.

    O conflito matrimonial (em que a ausência de filhos e sexo fazem a operosa juíza se culpar pela iminente separação), as lembranças agora ultrajadas de Fiona (ingressos de óperas que ela dava de presente a Jack; a exigente fuga de Bach que ela, talentosa pianista amadora, dominara por amor ao marido) e as decisões judiciais que deve tomar com serenidade, sem transparecer que é uma mulher em crise, tudo isso é narrado sem sobressaltos, com aquela nota melancólica que assinala as fraturas de um casamento e de uma vida profissional que se acreditava sólidos.

    Surge então um novo caso para atar os fios da vida pública e da vida privada de Fiona: um jovem de 17 anos, Adam Henry, que, acometido de leucemia, se recusa a receber transfusão de sangue, por ser Testemunha de Jeová.

    Respeitando judiciosamente os argumentos opostos dos familiares e da equipe médica, Fiona quer ouvir o próprio Adam e vai ao hospital em que ele está internado. Não consegue demovê-lo, mas deixa uma semente de dúvida no rapaz ao entoar com ele (violinista aprendiz) uma canção de Benjamin Britten sobre poema de Yeats que termina com o verso "eu era jovem e tolo, e hoje só me resta chorar".

    Balada de Adam Henry
    Ian McEwan
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    Não convém revelar o teor da decisão de Fiona sobre a transfusão. Basta dizer que, ao cogitar lhe oferecer outro sistema de crenças, ela se expõe ao risco de transformar aquilo que parecia satânico (um pragmatismo médico-científico, uma moral laica do direito à vida e à felicidade) numa outra forma de servidão, mais profana –porém igualmente demoníaca.

    "A Balada de Adam Henry" resvala no "thriller" psicológico, com o jovem enviando cartas e poemas a Fiona, perseguindo a juíza até Newcastle, cidade da qual ela conserva a memória de suas primeiras aventuras eróticas e na qual se vê na iminência de ceder à mesma tentação adúltera do marido.

    Na magnífica sequência final do romance, Fiona dá um recital para magistrados junto com um colega e, no "bis", toca a mesma canção que inoculara o ceticismo em Adam –cujo destino coloca em xeque suas próprias certezas sobre fidelidade, imparcialidade e sobre as trágicas consequências de fundamentalismos religiosos ou morais.

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