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    folha fronteiras

    Congolês conta como foi saga para trazer sua família ao Brasil

    (...) Depoimento a OLÍVIA FREITAS
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    30/04/2016 02h00

    RESUMO Nascido na República Democrática do Congo, o professor universitário Omana Petench criou uma organização para ajudar a denunciar violações contra mulheres e crianças em seu país. Com isso, virou adversário do governo e participou de uma revolta contra o Estado. Sofreu perseguições, tortura, prisões e sequestro, até cruzar a fronteira em busca de proteção. Sua casa no Congo foi invadida e sua filha mais velha, morta. Refugiado no Brasil, deixou mulher e cinco filhos em Uganda. Conseguiu se reencontrar com a família neste mês, em São Paulo, após três anos e meio de separação.

    *

    No Brasil, sou politicamente refugiado, mas culturalmente, não. Estou na terra dos meus ancestrais que vieram como escravos, eu vim como refugiado, mas livre.

    Estou aqui como refugiado porque perdi minha paz. Sou casado há 20 anos, mas fiquei longe da minha mulher por mais de três anos.

    Eu era professor universitário no Congo. Consegui estudar porque tinha dinheiro para ir à escola. Tive uma oportunidade de fazer doutorado na França, onde conheci uma organização de direitos humanos.

    Isso provocou uma revolução na minha cabeça. Descobri que vivia em uma ditadura. É uma forma de terrorismo de governo.

    Avener Prado/Folhapress
    O refugiado Omana Petench abraça mulher e um filho no aeroporto de Guarulhos (SP) depois de anos de separação
    O refugiado Omana Petench abraça mulher e um filho no aeroporto de Guarulhos (SP) depois de anos de separação

    O meu país é o primeiro do mundo em violência sexual contra mulheres. As crianças não estudam, são recrutadas pelas milícias para a guerra. O Congo é um país muito rico, mas a população é inacreditavelmente pobre.

    Em 2008, voltei da França, e a primeira coisa que fiz foi criar uma ONG para defender direitos de mulheres e crianças. Eu e minha mulher tínhamos uma equipe. Fazíamos palestras para a conscientização da população. Depois fizemos uma série de denúncias de violência sexual. Com esse trabalho, me tornei um forte opositor ao governo.

    As mulheres começaram a protestar e a fazer greve por seus direitos. Fui preso várias vezes e torturado. Bateram muito em mim. Tenho marcas até hoje.

    GASOLINA

    Saí da prisão e voltei a dar aula e à militância. Não podia deixar minhas causas. Depois de ser preso, ganhei força e apoio.

    O governo de Uganda criou grupos rebeldes que invadiram lugares do Congo próximos à fronteira e mataram todos.

    Pedi para que as pessoas não trabalhassem até o governo explicar as mortes. Foram 13 dias de revolução, todo mundo na rua. E quando isso acontece, a força é usada.

    Apareceu um militar na minha casa, me bateu e me levou preso. Eu ir para a cadeia foi como colocar gasolina no fogo. Muitas mulheres chegaram na delegacia nuas falando que, se me prenderam, também teriam que prendê-las. Bastaram 30 minutos para me soltarem.

    Dias depois, aparecem mais de 30 soldados na minha casa. Eu disse para minha esposa fugir com as crianças para Uganda. Os militares me despiram e me bateram muito. Fui para um caminhão, onde estavam outras pessoas. Nos levaram para o meio de uma floresta, nos colocaram de frente para uma cova e atiraram.

    Quatro caíram na minha frente, senti que tinha levado um tiro no estômago e desmaiei. Acordei com dor e um soldado me levou ao médico. Fiquei dois dias em coma.

    Fugi para Uganda, mas me acharam. Fui para o Quênia, onde conheci um médico brasileiro que me orientou a vir ao Brasil. Tive certeza que seria ajudado. Sabia que este país é diferente da Europa, porque tem amor ao próximo.

    Fui para Argentina, depois ao Paraguai, de onde entrei no Brasil em um caminhão. Aqui, fui ajudado por ONGs e virei professor de francês. Eumoro na casa de um amigo.

    Fiquei um ano sem notícias da minha família, não sabia se estavam vivos. Descobri que no dia que invadiram minha casa mataram a minha filha mais velha.

    Fundei uma ONG para ensinar e resgatar cultura e línguas africanas.

    Agora, tenho muito medo dessa política do Brasil. Medo da violência e da intolerância. Todo país tem seus problemas, mas pensei que fosse ter paz aqui.

    Um grupo de voluntários brasileiros arrecadou dinheiro para trazer minha família. Por todos esses anos, eu mal podia viver longe deles. Agora, com a chegada deles terei minha paz de volta.

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