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    Mostra com 500 desenhos revela acidez e egolatria de Millôr

    SILAS MARTÍ
    NO RIO

    04/05/2016 02h03

    Ricardo Moraes - 13.nov.2006/Folhapress
    Millôr Fernandes durante entrevista à Folha, em seu estúdio, em Ipanema, no Rio, em 2006
    Millôr Fernandes durante entrevista à Folha, em seu estúdio em Ipanema, no Rio, em novembro de 2006

    "O espelho é o também de você nunca." Um homem careca, de óculos escuros, chega a essa conclusão um tanto enigmática ao ver seu próprio reflexo num desenho de Millôr Fernandes. Não parece ser um autorretrato, mas o cartunista poderia ser esse cara perdido, às vezes desesperançado, talvez mais à procura de perguntas que de respostas.

    Também foi um dos maiores cronistas visuais dos costumes e da vida política do país, alvo de seus desenhos e charges ao longo de quase sete décadas -desde seus primeiros traços na coluna "Pif-Paf" da extinta "O Cruzeiro", que estreou em 1945, até sua morte, aos 88, há quatro anos.

    Mas, mesmo que olhasse para os descaminhos do Brasil, seu filtro era ele mesmo. Nos 500 desenhos do artista agora juntos no Instituto Moreira Salles carioca, na maior mostra já dedicada a ele, Millôr aparece multiplicado em autorretratos e nas infinitas versões de suas assinaturas.

    Millor
    Ilustracao reproduzida do livro " Millor:Obra Grafica ", desenho feito para publicacao na revista Veja em 26-11-1969. O material usado foi nanquim e evoline sobre papel. Credito: Millor ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Ilustração do livro "Millôr: Obra Gráfica"

    Elas, aliás, não deixam de ser um adorno, já que seus comentários ácidos, nunca distantes da poesia, são inconfundíveis. No casarão da Gávea, cada sala revela um lado de sua obra vertiginosa, começando pelo mais ególatra -ali ele surge gigante, saindo da praia como mais uma montanha em frente ao Pão de Açúcar, e a palavra "eu" aparece escrita no miolo de um redemoinho de setas.

    No resto de seus desenhos, todas elas parecem apontar para a realidade vista por ele. Seu tempo no "Cruzeiro", talvez onde mais experimentou técnicas e soluções gráficas, mostra a enorme gama de assuntos que atraíram seu olhar, além de um embrião de sua verve para atacar a miséria de cada dia brasileiro.

    Uma das colunas "Pif-Paf", por exemplo, falava em como "os americanos escreveram um livro famoso intitulado 'Coma e Emagreça'" e "os brasileiros estão esperando alguém que escreva um livro 'Passe Fome e Engorde'".

    De fato, a pobreza material e de espírito parece ser um dos maiores alicerces do humor construído pelo artista, embora não anulasse momentos de genialidade mais singela. Na mesma revista, um homenzinho faz um buquê de flores recortando parte da estampa gráfica da página onde foi impresso para dar à sua amada.

    Mas a lua de mel de Millôr com "O Cruzeiro" terminou com a publicação de "Esta É, Realmente, a Verdadeira História do Paraíso". A série de desenhos de 1963, que zombava da narrativa bíblica da criação do mundo, causou uma "grita entre as senhoras católicas", lembra Paulo Roberto Pires, um dos organizadores da mostra, o que resultou na demissão do cartunista.

    Millôr então levou a "Pif-Paf" com ele, editando uma revista com o nome da coluna, e passou a publicar na "Veja", uma de suas maiores vitrines.

    Essa mudança de endereço coincidiu com o golpe de 1964. A ditadura e seus generais retratados como pavões por Millôr viraram uma espécie de obsessão nos desenhos.

    Enquanto ironizava os militares, a sociedade mesquinha e racista também não saía do radar. Num desenho da época, um guarda ao lado de uma placa que diz "é proibido comer a grama" vigia um jardim por onde
    passa uma família de negros.

    Seu desencanto também tange os dramas menos sérios de uma classe média desiludida, de casais inebriados diante da televisão, suicidas resignados se equilibrando no parapeito dos prédios e velhinhos solitários em bancos de praça vendo as horas passar.

    Nos raros momentos em que toma distância da realidade mais imediata, Millôr mergulha na história da arte, parodiando clássicos, como o "Guernica", de Picasso, e os quadrados coloridos de Mondrian, que viram cruzes nas mãos de padres em procissão.

    MILLÔR FERNANDES
    QUANDO de ter. a dom., das 11h às 20h; até 21/8
    ONDE Instituto Moreira Salles, r. Marquês de São Vicente, 476, Rio, tel. (21) 3284-7400
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