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    crítica

    Diretora se aproxima do antigo cinema marginal em longa 'Ralé'

    INÁCIO ARAUJO
    CRÍTICO DA FOLHA

    05/05/2016 02h12

    Ao ver "Ralé" não me lembrei de nenhum filme. O que logo me ocorreu foi um velho programa da velha TV Record que se chamava "Quem Tem Medo da Verdade?", do qual Helena Ignez foi convidada.

    A atração cercava seus convidados com questões que variavam do moralismo médio ao obscurantismo mais tacanho. Poucas semanas antes, Leila Diniz deixara o programa aos prantos. Em outra ocasião, Grande Otelo saiu censurado por arruinar sua carreira com o hábito de beber. E por aí íamos.

    Era um show, tudo bem. Mas um show característico do espírito paulista, no qual tudo que fuja à norma mais estrita é intolerável. Esta é a "boa gente", os bons cidadãos, a classe média conformista que gosta de ver o artista ousado pedir perdão ou chorar.

    Pois bem, e para resumir: Helena Ignez não chorou nada. Os questionadores estiveram bem mais próximos do pranto do que ela.

    Hoje, décadas depois, Helena parece não ter perdido em nada o espírito rebelde dos anos 1960. Até pelo contrário. "Ralé" é tudo que permanece impermeável ao obscurantismo. Em termos de disposição cênica, aceite-se a definição que dá um personagem em determinado momento: um filme atonal.

    Divulgação
    A atriz Simone Spoladore em cena do filme 'Ralé'
    A atriz Simone Spoladore em cena do filme 'Ralé'

    A altivez é a mesma das grandes personagens de Helena Ignez: Angela Carne e Osso, Janete Jane e outras tantas. O tom de desafio das mulheres que entram em cena (como Djin Sganzerla e Simone Spoladore) é análogo. No caso dos homens se vai um pouco além, porque envolve assuntos bem do momento: sexualidades, casamento gay, ayahuasca, natureza.

    Os assuntos transbordam nesse filme-ensaio, como que atraídos por algumas personalidades (mais que personagens) que ali circulam: Ney Matogrosso e José Celso Martinez Corrêa, entre outros.

    Helena Ignez parece ignorar que o tempo dos marginais passou. Ou antes: parece ignorar, não. Ignora: para ela este é o tempo de reavivar um espírito de recusa do mundo dado, em que mais do que nunca a rebeldia é necessária.

    Daí a proximidade de "Ralé" com os trabalhos do antigo cinema marginal. Aqui, no entanto, a marca não é mais a da Helena atriz, mas a de uma realizadora de pleno direito. Se "Luz nas Trevas" (2012) foi um filme até certo ponto herdado de Rogério Sganzerla, aqui a personalidade da autoria projeta-se inteira.

    "Ralé" é um filme no feminino, e o espectador fará um favor a si mesmo caso não se empenhe em buscar "uma história". São, sim, histórias, ritmos, alternâncias que carregam o espectador para um universo talvez caótico, mas certamente não inerte.

    RALÉ
    DIREÇÃO: Helena Ignez
    PRODUÇÃO: Brasil, 2015, 14 anos
    ELENCO: Ney Matogrosso, Simone Spoladore, Djin Sganzerla
    QUANDO: estreia nesta quinta (5)

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