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    Intervenção à dependência de drogas de Prince chegou tarde demais

    JOHN ELIGON
    SERGE F. KOVALESKI
    JOE COSCARELLI
    DO "THE NEW YORK TIMES", EM CHANHASSEN (MINNESOTA)

    06/05/2016 17h09

    Prince Rogers Nelson era conhecido entre as pessoas próximas dele por ter um estilo de vida assiduamente limpo. Sua alimentação era vegana, e ele preferia evitar a presença de carne por completo. Era sabido que ele rejeitava o álcool e a maconha, e ninguém que participasse de turnês com ele podia consumir uma coisa ou outra.

    Mas Prince parece ter ocultado até mesmo de algumas das pessoas com quem tinha mais intimidade o fato de ter um problema com analgésicos, algo que se agravou tanto que no mês passado seus amigos procuraram a ajuda médica urgente do Dr. Howard Kornfeld, da Califórnia, especializado no tratamento de pessoas dependentes de medicamentos contra a dor.

    Kornfeld, que comanda um centro de tratamento em Mill Valley, Califórnia, enviou seu filho num voo noturno para encontrar Prince na casa do músico e discutir com ele um plano de tratamento. A informação foi dada por William Mauzy, advogado da família Kornfeld, em coletiva de imprensa dada na quarta-feira (4) diante de seu escritório em Manhattan.

    Mas Andrew Kornfeld, o filho, chegou tarde demais.

    Na manhã de 21 de abril, quando Andrew, que trabalha com seu pai mas não é médico, chegou a Chanhassen, o subúrbio de Minneapolis onde Prince vivia, ele foi uma das pessoas que encontraram o artista já morto em um elevador e telefonaram para o serviço 911. Funcionários de emergência chegaram, mas não conseguiram reanimar Prince. Ele tinha 57 anos.

    Enquanto a polícia ainda investiga exatamente o que matou o ícone pop e rock, há evidências crescentes de que ele tinha ficado gravemente dependente de analgésicos, algo que com certeza vai abalar as pessoas que o conheciam bem. Muitas delas insistiram nos últimos dias que nunca sequer viram Prince tomar um comprimido, o que dirá se exceder no consumo de medicamentos, embora algumas soubessem que ele tinha feito cirurgia nos quadris alguns anos atrás.

    Em meados de abril, quando seu jato particular teve que fazer um pouso de emergência em Moline, Illinois, depois de Prince desmaiar no avião, seus amigos decidiram que talvez tivessem que intervir, como informou uma pessoa com conhecimento da situação. Nos dias subsequentes, Prince garantiu a seus amigos que não havia nada de errado. Segundo seu agente, ele estava com gripe.

    "Estou muito bem", Prince falou a seu advogado, L. Londell McMillan, dois dias após o pouso de emergência.
    Mas, três dias depois da conversa com McMillan, os representantes do músico estavam pedindo ajuda de um médico especializado em dependências, fato que foi noticiado primeiramente pelo "The Star Tribune", de Minnneapolis.

    UM ASTRO MUITO RESERVADO

    O fato de Prince valorizar tanto sua privacidade pode ajudar a explicar por que ele guardou seu segredo, protegendo-o de tantas pessoas. Num Salão do Reino das Testemunhas de Jeová que ele frequentava, perto de Chanhassen, os fiéis fizeram pouco caso dos primeiros relatos de que o músico talvez tivesse dependência de analgésicos.

    E ele raramente deixava transparecer para os músicos que faziam turnê com ele quanto seus quadris de fato doíam, depois de décadas fazendo apresentações extenuantes, saltando sobre o palco usando sapatos de salto plataforma. Os músicos só notavam coisas pequenas, como, por exemplo, que ele tinha parado de fazer splits (abertura total das pernas).

    "Em todas as turnês que fizemos, sempre havia algum momento em que ele sentia dor ao se apresentar", falou Alan Leeds, ex-diretor de turnês de Prince nos anos 1980 e mais tarde presidente da gravadora do artista, Paisley Park Records. "Ele era aquele tipo de artista da velha escola, 'o show precisa continuar', por isso a ideia de ele tomar remédios para conseguir apresentar-se no palco não me parece estranha."

    Mas Leeds e outros disseram que Prince nunca falou de analgésicos com eles. Quando perguntavam como ele estava se sentindo, ele muitas vezes dava de ombros ou dizia que estava bem.

    Diferentemente de muitos astros de grandeza semelhante, que empregam um grande cortejo de assistentes e profissionais para cuidar de seu dia a dia, Prince era surpreendentemente autônomo, disseram amigos e associados dele, muitas vezes dirigindo seu próprio carro e marcando consultas sem o conhecimento de seu assistente. Essa insistência em conservar sua independência pode ter facilitado para ele guardar segredos.

    Muitos dos amigos mais íntimos, parentes e assessores de Prince se negaram a responder a perguntas sobre sua saúde. Assim, não está claro quem entrou em contato com Howard Kornfeld, mas uma pessoa com conhecimento da situação disse que Prince se dispôs de boa vontade a procurar tratamento médico.

    Kornfeld, filho, foi enviado a Paisley Park para tentar estabilizar a condição de Prince, disse Mauzy. Ele então contatou um médico na região de Minneapolis que liberou seu horário na manhã em que Prince foi encontrado morto, para que pudesse ter tempo para encontrar e avaliar o artista, falou Mauzy.

    "A esperança era estabilizá-lo ainda no Minnesota e convencê-lo a ir à clínica Recovery Without Walls, em Mill Valley", falou o advogado. "Esse era o plano."

    Howard Kornfeld "achou que era uma missão para salvar uma vida", disse Mauzy.

    Prince começou a tomar analgésicos anos atrás, para suportar a dor nos quadris, e em meados dos anos 2000 decidiu fazer cirurgia dos quadris. Depois disso, mais analgésicos lhe foram prescritos, revelou uma pessoa que trabalhou com ele e pediu anonimato devido à natureza do caso.

    Jason Kamerud, da polícia de Carver County, que investiga a morte do músico, disse que os investigadores estão tentando descobrir, entre outras coisas, se Prince pode ter sofrido uma overdose de analgésicos em sua residência. Mas, na quarta, Kamerud se negou a comentar as declarações de Mauzy. A polícia disse que não acredita que a morte de Prince tenha sido por suicídio ou homicídio.

    Na quarta-feira, representantes da DEA (Drug Enforcement Agency, o órgão americano de combate às drogas) e da procuradoria federal anunciaram que vão participar da investigação.

    O mistério em torno da morte de Prince espelha o enigma de sua vida. Ele rejeitava a cultura das selfies e não se deixava fotografar em sua casa ou seu estúdio. Ao mesmo tempo, regularmente abria as portas da residência e convidava o público para festas no local, onde ele falava com os presentes.

    Dias antes de sua morte, ele tinha feito exatamente isso, mostrando um novo piano e guitarra roxos para cerca de 200 convidados. Ele tinha começado a escrever sua autobiografia, com o título provisório de "The Beautiful Ones". Tinha apresentações marcadas em oito cidades do país.

    DEPRESSÃO

    Mas as pessoas que o conheciam especulavam que ele poderia estar sofrendo, com seus problemas físicos limitando sua capacidade de se apresentar em turnês. Ele estava melancólico desde a morte de Denise Matthews, também conhecida como Vanity, em fevereiro, uma antiga namorada e colaboradora dele. Em um show na Austrália em 16 de fevereiro, o dia após a morte dela, Prince ficou emotivo.

    "Uma pessoa querida faleceu", ele disse à plateia, e então dedicou a Matthews a canção "Little Red Corvette", segundo descrições do show publicadas pela mídia local. Mais tarde ele disse à plateia: "Estou me esforçando para ficar concentrado aqui. Hoje está difícil para mim."

    Amigos preocupados disseram que tinham discutido o estado emocional de Prince recentemente. Ele tinha dito a algumas pessoas que estava deprimido. Alguns amigos desconfiavam que ele estivesse passando por uma fase de estagnação profissional.

    Na realidade, Prince recusou uma oferta de US$ 85 milhões para fazer uma grande turnê mundial, optando em vez disso por shows menores, contou Kim Worsoe, seu coordenador de turnês. "Não faço turnês, faço eventos", Prince lhe falou.

    Outros amigos disseram que não detectaram nenhuma depressão. Sua amiga e dançarina Damaris Lewis disse que as apresentações pequenas eram um indicativo de que Prince tinha encontrado a paz nele próprio. "Seus fãs eram sua família", ela disse.

    Em suas apresentações finais, Prince, que na véspera do Ano Novo fez um show grandioso no Caribe, evitou suas performances altamente vibrantes com uma big band, optando por algo mais intimista e menos cansativo: apenas ele próprio tocando piano e cantando. Disse que era a turnê "Um Piano e um Microfone".

    Em março ele fez uma festa e apresentação improvisadas em Nova York para anunciar seu livro de memórias. Ele fez três concertos no Canadá, voltando para casa em 23 de março e assistindo a um serviço religioso em seu Salão do Reino das Testemunhas de Jeová, de terno e gravata e com os cabelos penteados para trás.

    Prince foi batizado na fé em 2003 sob a orientação do baixista Larry Graham, cuja banda tocava regularmente com ele e que se mudou para o Minnesota com sua família para ficar perto do artista. Como Testemunha de Jeová, ele ia de porta em porta com outro fiel na área de atuação da igreja, recitando versículos da Bíblia e apresentando-se como Rogers Nelson.

    "Ele era muito ligado em coisas espirituais", falou Graham. "Ele já se interessava antes pela Bíblia e o amor a Deus."

    Amigos de Prince disseram que sua dedicação à religião, somada a seu engajamento com uma vida limpa, pode ter contribuído para fazê-lo sentir vergonha de sua dependência crescente de medicamentos.

    Os shows seguintes que ele tinha programados eram duas apresentações consecutivas em 7 de abril no Fox Theater, em Atlanta. Mas a promotora dos shows em Atlanta, Lucy Lawler-Freas, contou que recebeu uma ligação de Worsoe às 10h da manhã dos shows. Prince estava com gripe.

    "Ele mal está conseguindo falar, esta rouco mesmo", Worsoe lhe disse.

    Worsoe contou que foi a primeira vez em mais de um quarto de século, o tempo que trabalhou com Prince, que o artista cancelou um show.

    Dois dias depois, Prince marcou o show novamente, dessa vez para o dia 14.

    Na nova data marcada, Prince pousou em Atlanta atrasado e precisou de escolta policial para chegar ao teatro em tempo. Disse que estava se sentindo mal, mas, no camarim, onde havia água e frutas para o artista, Worsoe disse que não percebeu nenhum sinal visível de algum problema físico.

    Com seu penteado afro pronto, Prince subiu ao palco, tocando em seu piano cor púrpura, cercado de candelabros. Ele fez duas apresentações, às 19h e às 22h.

    "Ele estava épico", disse Lawler-Freas. Não havia qualquer sinal de gripe.

    Segundo Worsoe, Prince disse que foi a melhor apresentação de sua vida. Mas, quando terminou, falou que seu estômago estava doendo. Ainda segundo Worsoe, Prince queria voltar a Minneapolis e ir ao médico. Pediu para adiar apresentações em St. Louis, Nashville e Washington que já estavam programas para a semana seguinte, mas ainda não tinham sido anunciadas.

    CRISE MÉDICA NO AR

    Prince e dois outros passageiros embarcaram em seu jatinho particular, que decolou às 0h51 da sexta-feira, depois da apresentação em Atlanta. Depois de uma hora no ar, o piloto enviou mensagem de rádio a controladores de tráfego aéreo, dizendo que estava com um passageiro desmaiado a bordo. Faltando apenas 48 minutos para chegar ao seu destino, Minneapolis, o avião deu meia-volta e pousou rapidamente em Moline, à 1h18.

    O guarda-costas de Prince o carregou do avião até paramédicos que o aguardavam em terra. De lá, ele foi levado às pressas ao hospital. Prince foi tratado com uma injeção de Narcan, medicamento normalmente dado a pessoas quando sofrem uma overdose de opiáceos, segundo relatos publicados. Mas ele passou apenas algumas horas no hospital, antes de seguir viagem no avião para casa.

    Mestre do controle de sua imagem, Prince começou imediatamente a moldar a narrativa.

    Ele se apressou a organizar uma festa em sua casa para a noite seguinte. Mais tarde, andou de bicicleta no estacionamento de um shopping.

    Seus representantes pediram a Jeremiah Freed, blogger que comanda o site drfunkenberry.com, para ajudar a divulgar a festa que teria lugar na noite de sábado. Freed contou que antes daquela noite ele nunca tinha se preocupado com a condição de Prince, se bem que uma coisa que o músico lhe disse em janeiro chamou sua atenção. Prince lhe falou da morte de David Bowie, dizendo que estava tendo sonhos lúcidos em que se comunicava com pessoas que tinham morrido.

    No primeiro momento em que Prince chegou à festa, antes de estar em plena vista do público, "ele me pareceu abalado", Freed recordou. Eles se olharam olho no olho. "Quando eu o vi, não havia um sorriso ali."
    Outros amigos procuraram Prince no fim de semana, preocupados com o que tinha acontecido com ele no avião. A mensagem dele a todos foi: "Estou bem".

    Sabendo como Prince valorizava sua privacidade —ele não usava celular, mas navegava na internet constantemente em seu MacBook prateado—, seus amigos disseram que não insistiram.

    Na segunda-feira, 18 de abril, Lawler-Freas, a promoter de Atlanta, falou que os representantes de Prince lhe disseram para adiar a confirmação dos oito shows que ela tinha programado para ele. Prince ia tirar uma folga naquela semana, e os representantes voltariam a falar com ela na segunda-feira seguinte, 25 de abril, para confirmar os concertos.

    Prince parece ter levado a vida normalmente nesses dias; na terça-feira, 19 de abril, deu uma passada no Dakota Jazz Club, em Minneapolis. No dia seguinte, disse a polícia, alguém o deixou em sua casa às 20h. Ele foi encontrado morto na manhã seguinte. Uma grande investigação começou.

    Kamerud, da polícia de Carver County, disse: "Algumas investigações são como quebra-cabeças de 50 peças, e outras são como um quebra-cabeças de mil peças. Esta é do segundo tipo."

    Freed, o blogger, disse que mal consegue acreditar nos relatos sobre uma possível dependência de analgésicos. Ele disse que Prince ajudava qualquer pessoa de sua banda que tivesse um problema com drogas, chegando a pagar por seus tratamentos.

    Se a pessoa consumisse drogas, ele disse, "não trabalharia com Prince. Não teria trabalho."

    Tradução CLARA ALLAIN

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