• Ilustrada

    Saturday, 04-May-2024 15:16:01 -03

    Nuno Ramos constrói arquitetura da tristeza com andaimes musicais

    SILAS MARTÍ
    ENVIADO ESPECIAL A BELO HORIZONTE

    11/05/2016 02h15

    Nuno Ramos esvaziou o monumento. No átrio do Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte, está um emaranhado de andaimes numa escalada rumo ao nada. Estranhas flautas enroscadas nessas hastes metálicas sopram uma música arrastada -quem espera reconhece o "Samba de uma Nota Só", de Tom Jobim, transformado em marcha fúnebre.

    "É uma coisa desacelerando, uma sublimação para ficar no mesmo lugar", diz o artista, enquanto atravessa a floresta de ferro que construiu ali. "O Tom é erótico, de peito aberto, é beleza e desejo. Aqui isso vira de ponta cabeça."

    Não é a primeira vez que Ramos mergulha no avesso do lado mais solar da realidade para criar suas obras.

    Divulgação
    Instalação 'O Direito à Preguiça', de Nuno Ramos, no Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte.
    Instalação 'O Direito à Preguiça', de Nuno Ramos, no Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte

    Desde os urubus e lápides que levou à Bienal de São Paulo há seis anos, os aviões espatifados contra copas de árvores que montou no Museu de Arte Moderna do Rio e as casas que afundou na lama numa galeria, seu trabalho seduz na superfície para expor um fundo do poço existencial.

    Essa espiral de tristeza, bela e ao mesmo tempo desoladora, tem também uma trilha sonora irmã -o samba mais negro e sofrido. Versos de Nelson Cavaquinho e Batatinha, no caso, sublinham algumas obras da nova mostra.

    Ramos, também músico e escritor, parece tomar a palavra aqui como pedra, base estrutural das coisas que tomam forma em escala ameaçadora, como os andaimes do átrio, os esquifes de vidro cobertos de breu derretido, os livros alvejados por balas e enormes aquários de aço afundados com violência nas paredes.

    "Tudo aqui é palavra, tem algo de literatura", diz Ramos. "Queria obras que gritassem, que tivessem som. Então tudo canta, tudo fala."

    Na fala quase cantada dos leiloeiros, aliás, Ramos encontrou a raiz perversa de suas instalações com aquários. Peixes nadam ali dentro de estruturas de aço ao som da gravação de leilões -milhões e milhões de dólares em ascensão vertiginosa das vendas de um Rothko e do "Grito", de Munch.

    Esses aquários afiados, lembrando barcos à deriva, parecem afundar as paredes da galeria. Na sala de trás, o lado B da obra, fica só um volume esticado, como pele rasgada. Longe do leilão, o som ali é
    de Drummond lendo "José".

    "Imaginei esse negócio da arte entortando a parede do museu e coisas meio singelas do outro lado", diz o artista. "É o peixe, o quadro, que empurra esses muros."

    Essa cirurgia museológica calcada na violência dos leilões de arte revela uma nova camada de desilusão na obra de Ramos. Não à toa, ele diz ter feito agora uma de suas exposições mais vazias. Mesmo cheia de som, é o silêncio que ganha vulto ensurdecedor.

    O jornalista viajou a convite do CCBB-BH.

    NUNO RAMOS
    QUANDO de qua. a seg., das 9h às 21h; até 27/6
    ONDE CCBB, pça. da Liberdade, 450, centro, BH, tel. (31) 3431-9400
    QUANTO grátis

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024