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    'O Diário de uma Camareira' ganha 1ª tradução no Brasil após 116 anos

    ALVARO COSTA E SILVA
    COLUNISTA DA FOLHA

    21/05/2016 02h23

    "Por amor ou prazer, lassitude ou piedade, vaidade ou interesse, eu deitei com muitos homens... e isso para mim é algo normal, natural e necessário. Não tenho qualquer remorso e foi muito raro eu não ter tido qualquer alegria que fosse".

    A sinceridade da jovem Celestine é total, e ainda hoje pode chocar os mais pudicos, conservadores ou hipócritas. Imagine na França de 1900, quando o romance "O Diário de uma Camareira", de Octave Mirbeau, saiu publicado e, em pouco tempo, vendeu cerca de 140 mil exemplares.

    Só agora o livro ganha uma tradução em português do Brasil –e quase por acaso. No ano passado, o editor e escritor Mateus Kacowicz, 67, assistiu a uma adaptação para o cinema, com direção de Benoit Jacquot e Léa Seydoux no papel principal.

    Divulgação
    Léa Seydoux e Vincent Lacoste em 'O Diário de uma Camareira', de 2015
    Léa Seydoux e Vincent Lacoste em 'O Diário de uma Camareira', de 2015

    "Deu vontade de conhecer a obra original, e descobri um senhor escritor", diz Kacowicz. Entusiasmado, ele mesmo traduziu o romance, com o qual resolveu retomar as atividades da editora Xenon.

    Antes o livro já tinha sido levado às telas: "Segredos de Alcova", em 1946, por Jean Renoir, com Paullete Goddard vivendo Celestine; e "O Diário de uma Camareira", em 1964, de Luis Buñuel, com Jeanne Moreau. E, só na França, teve ao menos sete adaptações teatrais.

    "É uma obra plástica, visual. O texto é praticamente um roteiro. Os diálogos são ricos, e o leitor sente até a entonação com que são ditos", nota o editor.

    Octave Mirbeau (1848-1917), romancista elogiado por Lev Tolstói, dramaturgo, jornalista, polemista e influente crítico de arte (tido como "descobridor" de Van Gogh), era um agudo observador de seu tempo.

    No Brasil, foi lido por escritores como Monteiro Lobato (que o cita na correspondência com Godofredo Rangel) e João do Rio, que a ele se refere no folhetim "Memórias de um Rato de Hotel".

    "O Diário de uma Camareira" chegou a ser considerado um livro marxista-feminista, ao narrar, em primeira pessoa, a peregrinação da personagem por conventos e palacetes, sempre sujeita a todo tipo de exploração: "Se as almas que eu desnudo exalam forte odor de podridão, não é por minha culpa".

    ILHA DO DIABO

    "É um livro moderno até hoje. Pela consciência de Celestine, que se sabe usada, e se revolta. Por trazer a intimidade no seio da alta sociedade, o que rola depois que as visitas vão embora. E por deixar seus personagens dizerem, sem qualquer pudor, as maiores barbaridades, inclusive diatribes antissemitas", diz o tradutor.

    No "Quase Prefácio" à edição, Mateus Kacowicz chama a atenção para o contexto social e político no qual a camareira redige suas anotações. A França estava dividida pela repercussão do caso Dreyfus, envolvendo o capitão do Exército, de origem judaica, injustamente acusado de espionagem em favor da Alemanha em troca de dinheiro. Antes de ter sido provada sua inocência, Dreyfus foi mandado para a Ilha do Diabo.

    No fim do volume, notas numeradas referem-se a passagens do texto que identificam as personalidades da época –Jules Lamaitre, Paul Bourget, Édouard Drumont, Émile Zola, entre outras– que pela imprensa travaram uma disputa pró e anti-Dreyfus.

    "Eu me identifico imensamente com Mirbeau, com sua sinceridade brutal, seu horror à cafonice, seus imperativos éticos e com a quantidade de amigos que perdeu ao aderir à defesa de um judeu", conta Kacowicz, que em 2010 publicou o romance "Acidente em Matacavallos".

    Em seu retorno, a Xenon ainda é "uma editora de um homem só". Na primeira dentição, a partir de 1986, chegou a comercializar cerca de 60 títulos, entre os quais "A História do Universo em Quadrinhos", de Larry Gonick, e uma edição em capa dura de "O Rio de Janeiro do Meu Tempo", de Luiz Edmundo.

    "Estou procurando pepitas esquecidas, até mesmo na minha biblioteca. Prontas para serem descobertas por um faiscador solitário", diz o editor.

    O DIÁRIO DE UMA CAMAREIRA
    AUTOR Octave Mirbeau
    EDITORA Xenon
    QUANTO R$ 54 (306 págs.)

    Edição impressa

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