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    Filme e livros resgatam memória das boates mais extravagantes do país

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    22/05/2016 02h04

    Vestida de baby-doll, com plumas coroando uma enorme cabeleira platinada, Wilza Carla foi à boate montada num elefante. Na porta da antiga Medieval, na rua Augusta, o bicho emprestado do circo foi ao chão num estrondo, e a atriz rolou sobre os fãs, iluminada pelos relâmpagos das máquinas fotográficas.

    "Foi uma noite de glória", lembra a transformista Darby Daniel. Ela também entrou para a história da noite paulistana quando foi à mesma casa noturna vestida de Branca de Neve. Enfiada num caixão carregado por sete anões, ela despertava com o beijo de um príncipe montado num cavalo branco. Ao roçar os lábios, cuspia uma maçã, num soluço amoroso.

    "Chegava bicha de limusine, chegava bicha em carruagem, chegava bicha de patinete", lembra a drag queen Kaká Di Polly, outra habituée da Medieval nos anos 1970. "Era uma competição para ver quem era a mais poderosa."

    Esses relatos coloridos, mesmo sendo a mais pura verdade, estão no documentário "São Paulo em Hi-Fi", de Lufe Steffen, agora em cartaz. O filme é talvez o lado mais visível de uma onda de obras também destinadas a jogar luz sobre a memória da noite no país –das luxuosas boates de Copacabana, que Ruy Castro, escritor e colunista da Folha, retrata em "A Noite do Meu Bem", à New York City Discothèque.

    Inaugurada em Ipanema, em maio de 1976, essa última casa tem sua história narrada em detalhes num livro recém-lançado pelo metaleiro e crítico de cinema Mario Abbade, em parceria com Celso Ferreira Rodrigues Junior.

    Nesses antros escuros, que Tom Jobim chamou de "cubos de trevas", rolavam verdadeiras explosões hedonistas, de conchavos políticos regados a uísque e champanhe à dança frenética entre os raios laser da era da música disco.

    Mas fosse na penumbra, empunhando taças de cristal às mesas com toalhas de linho do Vogue, a "boate mais importante da história do Brasil", nas palavras de Ruy Castro, ou suando nos inferninhos querendo ser Broadway que se alastravam pelo centro de São Paulo, o denominador comum dessa era de ouro da noite era a extravagância.

    "Era o poder no Brasil que frequentava as boates, o poder político, econômico, sexual e comportamental", diz Castro. "Eram homens elegantérrimos, de terno e gravata, sapato engraxado, cabelo bem penteado e suas mulheres chiquérrimas, todos bem de vida, viajados, sofisticados. Havia um clima permanente de sedução nessas boates."

    Lufe Steffen também relembra a pompa das casas que se firmaram em São Paulo antes da era das discotecas. "Existia um glamour", diz o cineasta. "Era quase aristocrático. Tinha essa atitude de a noite ser um negócio chique. Era um universo paralelo."

    No caso, um mundo resplandecente. Enquanto no Vogue do Rio capital da República, nos anos 1940, os arranjos de flores podiam ser de Burle Marx e adereços de requinte vinham contrabandeados por comandantes da Panair, casas como a Medieval e a Corintho, símbolos dos anos 1970 e 1980 da noite de São Paulo, tinham costureiras para confeccionar as mais indecorosas fantasias.

    A ERA DO DJ

    Mas o disco virou quando os espetáculos deixaram de ser ao vivo. O samba-canção que dominava a noite carioca se calou nos anos 1960, enquanto os shows de vedetes e transformistas foram rareando nas boates de São Paulo até meados dos anos 1980, quando DJs viraram estrelas da noite, e o foco se deslocou dos palcos para as pistas de dança.

    Emblema dessa virada, a New York City Discothèque abriu as portas no Rio como gêmea da Ipanema Discothèque, casa do mesmo dono que já bombava em Manhattan no auge da era "Embalos de Sábado à Noite". Tanto que o endereço carioca serviu de pano de fundo de uma cópia nacional do clássico marcado pelo rebolado de John Travolta, o "Sábado Alucinante", de Cláudio Cunha, rodado em 1979.

    "Você ficava embevecido com a música ensurdecedora e aquele jogo de luzes", diz Mario Abbade, um dos autores do livro sobre a casa. "Era todo mundo pegando todo mundo." Mas, é claro, com menos luxo. Kaká Di Polly, no filme de Steffen, lamenta e diz que é preciso buscar o glamour "onde ele ainda pode existir".

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    Veja o filme e leia os livros

    SÃO PAULO EM HI-FI
    Filme de Lufe Steffen sobre a era de ouro das boates que marcaram a cidade nas décadas de 1960, 1970 e 1980 está em cartaz no CineSesc (r. Augusta, 2.075) em quatro sessões diárias, às 15h, 17h, 19h e 21h

    A NOITE DO MEU BEM
    Livro de Ruy Castro, escritor e colunista da Folha, saiu pela editora Companhia das Letras (R$ 59,90, 560 págs.)

    A PRIMEIRA E ÚNICA NEW YORK CITY - A DISCOTECA QUE INICIOU A ERA DISCO NO BRASIL
    Livro de Mario Abbade e Celso Rodrigues Ferreira Junior acaba de sair pela editora Autografia (R$ 36, 128 págs.)

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