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    CRÍTICA

    Leitor é abduzido por mundo de 'Bulldogma', HQ de Wagner Willian

    ÉRICO ASSIS
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    29/05/2016 02h00

    Wagner Willian/Divulgação
    Ilustração de Bulldogma (Veneta), de Wagner Willian ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    A protagonista Deisy Mantovani em "Bulldogma", do quadrinista brasileiro Wagner Willian

    "Bulldogma" é, em primeiro lugar, uma HQ grande. Com 320 páginas, é das maiores já lançadas de uma tacada só por autor brasileiro. Wagner Willian levou aproximadamente dois anos na produção, velocidade considerada bastante alta no meio das graphic novels, o que demonstra fôlego e, diriam alguns, desprendimento financeiro invejáveis.

    As 320 páginas contam um momento na vida de Deisy Mantovani, designer freelancer, ilustradora e aspirante a quadrinista, que talvez esteja passando pela crise dos 30 anos. A história começa quando a personagem se muda para um apartamento onde, segundo o anúncio imobiliário, acontecem "abduções alienígenas recorrentes".

    Se Deisy será ou não abduzida por aliens interessa menos que o fato do leitor ser, desde a primeira página, abduzido pelo mundo de Deisy. Um mundo, no caso, apinhado de referências da cultura pop, com vários toques cult e aquela espirituosidade "só para entendidos" de frase de camiseta hipster.

    Slavoj iek, Stephen Hawking, Yojiro Takita, François Truffaut, o game Grand Theft Auto, os filmes "Inimigo Meu", "Jesus Cristo Superstar", "Cada Um Vive Como Quer" e "Ela", a HQ "Os Invisíveis", os músicos Krzysztof Penderecki, Nina Simone e Otto e o ator Charles Bronson aparecem no meio da salada, às vezes identificados por notinhas de rodapé (autoirônicas) para confirmar a referência.

    Em cena exemplar da mistureba, Deisy grafita um muro com a frase: "Quando encontrar o Buda, mate o Buda. Quando encontrar Cristo, crucifique-o. Diante de si mesmo, seja outro." E assina: "Maria Bonita".

    A impressão é de retorno ao cinema ou à literatura dos anos 1990, quando Quentin Tarantino e Nick Hornby coalhavam suas obras de referências pop e cult —e acabaram criando escola. A ubiquidade das referências seria o realismo para uma geração de leitores.

    FRAGMENTADA

    "Bulldogma", no entanto, não fica só embaralhando referências e usa outro artifício: a narrativa fragmentada, que se dá simultaneamente em várias faixas.

    Tende a ser difícil dizer se uma cena é a vida real de Deisy, se é um de seus sonhos, se é o quadrinho que ela está produzindo ou se entramos num fluxo de consciência que mistura realidade e delírio. Quando o leitor está perto de se decidir por um desses, a cena é cortada abruptamente. Ao combinar essa fragmentação e o ritmo incessante de referências, a leitura lembra um feed de rede social.

    Você vê pedaços de coisas (Deisy entra no buraco do teto do banheiro e...?), uma imagem que chama a atenção mas que fica indecifrada (é a Batgirl trocando o absorvente?), um meme nostálgico (Alf, o E.Teimoso, numa mesa de bar?). Enquanto vai descendo a barra de rolagem, o leitor tenta captar o que de fato está acontecendo na vida da protagonista.

    Há alguns problemas técnicos no álbum: há diálogos em que a ordem de leitura dos balões é imprecisa, e a falta de espaço maior entre os quadros (a chamada "sarjeta") causa sobreposições que desorientam a leitura. Ao final da leitura, porém, pode-se ficar pensando se foram ou não intencionais, para entrar no jogo da fragmentação.

    O que é determinante para o ritmo narrativo bagunçado dar certo é a quantidade de páginas do álbum. Muitas HQs que optam pela via experimental perdem-se nesse quesito: não têm tempo de leitura para o leitor se aclimatar à proposta.

    "Bulldogma" não entrega sua história do jeito fácil, mas na leitura, seja ela de uma sentada (com um par de horas) ou espaçada entre dias, entende-se e convive-se com as regras desse universo.

    No meio dessa bagunça, Willian consegue construir uma personagem e contar seu momento de crise. E Deisy é uma das figuras mais cativantes que já se viu nos quadrinhos brasileiros. O trunfo da HQ é que, no meio da ousadia narrativa, tem-se uma história forte e inteligente. Isso e o melhor uso que já se fez do topete de Tintim.

    BULLDOGMA
    AUTOR Wagner Willian
    EDITORA Veneta
    PREÇO R$ 59,90 (320 págs.)
    AVALIAÇÃO ótimo ★★★

    Edição impressa

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