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    crítica

    Em diário, Robert Stevenson defende diversidade de crenças

    ALCIR PÉCORA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    03/06/2016 17h36

    O escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894) é sobretudo conhecido por obras-primas como "A Ilha do Tesouro" (1883), "O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hide" (1886) e "O Morgado de Ballantrae" (1889). "Viagem com um Burro pelas Cevenas" é de um período anterior e relata a viagem que o autor fez pela serra das Cevenas, no sul da França, entre 22 de setembro e 3 de outubro de 1878, na companhia de uma burrica.

    O livro está dividido claramente em duas partes. A primeira corresponde aos seis primeiros dias em que atravessa a região do Alto Gévaudan, e a segunda, aos seis seguintes, na direção sul, até Alais.

    Ou seja, no centro do relato está a passagem de uma região católica para uma protestante, onde, 200 anos antes, estourou a revolta dos "camisards", camponeses calvinistas sublevados contra a revogação por Luís 14 do Edito de Nantes, que lhes garantia liberdade de culto.

    Hulton Archive/Getty Images
    Retrato do escritor escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894)
    Retrato do escritor escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894)

    Ao longo da segunda metade do caminho, Stevenson celebra a resistência protestante, apoiada pela Inglaterra, pinçando aqui e ali episódios pitorescos de líderes como o "cavalheiresco" Roland; como Cavalier, "um aprendiz de pedreiro com gênio militar"; Castanet, que gostava de "teologia controversa", e outros como "Espírito" Séguier, Joani, Courdec etc.

    "Até então" –diz ele, sobre a parte católica– "eu viajara por um distrito sem graça e na trilha de nada mais notável do que a besta devoradora de crianças de Gévaudan", um lobo, e ele mesmo não tão grande quanto pintavam.

    Já na região calvinista, Stevenson via-se "no cenário de um capítulo romântico", no qual os camisards identificavam-se com os covenanters, presbiterianos escoceses que se levantaram contra as perseguições de Carlos 1º, ambos os movimentos culminando no assassinato de autoridades religiosas, respectivamente, os arcebispos François du Chayla e James Sharp.

    Tal "nota marginal romântica na história do mundo" articula-se igualmente à mais repetida de todas as máximas recolhidas na viagem: "Não é bom para o homem mudar". Stevenson a interpreta como significando que "não devo deixar o meu velho credo por outro e trocar somente umas palavras por outras".

    A consequência lógica que extrai desse ajuste da religião aos costumes de origem, ou à cor local, é a de que ela não deve conduzir à universalização autoritária da crença, mas, ao contrário, a guardar distância do centro de poder. Na prática, deveria levar a uma situação de mútua tolerância, uma vez que a cada um não cabe senão ajustar-se à própria origem.

    Este é o cerne do relato que, não por acaso, parte de uma citação do "The Pilgrim's Progress", do pregador protestante John Bunyan (1628-1688), uma narração alegórica da travessia da alma por este mundo ("Cidade da Perdição") até o outro, onde reside a salvação ("Cidade Celeste").

    Isto dito, é preciso dizer que a burrica Modestine está superestimada tanto na edição decorativa do livro, cuja capa pretende imitar-lhe a pele, como no posfácio de Gilles Lapouge, que a toma forçadamente como figura central do relato.

    De fato, ela só vem ao primeiro plano no capítulo inicial, que explora comicamente a inépcia de Stevenson para lidar com o gênero, e, depois, já ao final, quando a enxerga compassivamente como uma "pobre alma", cujos "defeitos eram aqueles da sua raça e sexo".

    ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Unicamp

    VIAGEM COM UM BURRO PELAS CEVENAS
    AUTOR: Robert Louis Stevenson
    TRADUÇÃO Cristian Clemente
    EDITORA: Carambaia
    QUANTO: R$ 87,90 (144 págs.)

    Edição impressa

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