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    crítica

    Desenhos de Gervasio Troche são descanso à polarização ferrenha

    ÉRICO ASSIS
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    04/06/2016 02h19

    Em tempos de polarização ferrenha quanto a tudo que se escreve ou se diz –seja sobre política partidária, relações entre gêneros ou filmes de super-herói–, desenhos podem ser refúgio. Imagens podem abrir-se para várias interpretações, incluindo as indesejáveis, ainda mais quando desacompanhadas de legendas ou qualquer outro texto.

    Mas há um tipo de desenho que, mesmo sem recorrer à abstração das formas, é tão geral e escancara tanto suas possibilidades de interpretação que qualquer tentativa de lhe atribuir um só polo ideológico seria canalhice.

    É neste terreno que trabalha o uruguaio Gervasio Troche. Conhecido sobretudo das redes sociais, ele segue uma tradição de desenho que busca exprimir, com inversões, junções e deslocamentos criativos, algo sobre a condição humana e o cotidiano.

    SIGNIFICADO

    Não são charges, pois não há referência a um fato ou época. Também não são, na maioria, histórias com início, meio e fim. Mas há significado nesses desenhos, mesmo que não seja único.

    Em um deles, a linha que a maré deixa na praia é contornada por pegadas. As pegadas nunca entram ou saem da água, ficando em paralelo perfeito com a linha sinuosa onde chegam as ondas.

    Você pode entender como uma brincadeira infantil, como a de desenhar na areia. Mas poderia ser uma maneira de representar o receio, a insegurança de cruzar linhas? Ou algo mais sobre a separação entre terra e mar?

    Em outro, cinco pessoas em volta de uma fogueira recebem um sexto indivíduo, que traz pela mão uma labareda. Entende-se que o recém-chegado vai alimentar a fogueira? Que aceitar mais uma pessoa é forma de manter o grupo aquecido (ou vivo)? Ou eu deveria pensar que a labaredazinha levada pela mão do novo integrante é como um filho?

    Qualquer interpretação tem a ver com você projetar suas visões de mundo e preconceitos. Cada leitor pode ver várias coisas diferentes em cada desenho. Troche provavelmente gosta dessa variedade. Talvez nem tenha, para si, significado do que desenhou.

    Além de não haver texto nem cores, o traço tende ao simples extremo. Identificam-se figuras humanas, algumas cenas da natureza, alguns objetos estilizados. Mas a linha, embora cuidadosa, não tem rebuscamento nem procura acrescentar detalhes.

    BRITTO E SEMPÉ

    A estilização é um ponto positivo do trabalho de Troche. Tivessem traço mais detalhado ou mesmo cores, muitas das páginas poderiam cair no terreno brega dos quadros em sala de espera de pediatra. A crueza em preto e branco dá uma impressão de imediatismo e simplicidade que foge da turma de Romero Britto e aponta para outros referentes, como o francês Jean-Jacques Sempé.

    Quase todas as ilustrações são individuais. Há algumas histórias em quadrinhos espalhadas pelo livro, assim como cenas –tais como a da linha da maré e da fogueira– que se repetem.

    Outros temas, como folhas que caem de árvores e fitas cassete, ressurgem com alguma frequência. Mas não há linha que conecte todo o álbum, fora o traço do desenhista.

    É curioso que Troche seja, em grande parte, fruto das redes sociais, terreno primaz da polarização. O desenhista mostra pontos de vista, mas é difícil afixar cada desenho a uma ideologia só.

    Em vez de propor interpretações fáceis, as criações do uruguaio são uma oportunidade de se perder, de encontrar vários significados. E também de descansar.

    BAGAGEM
    AUTOR: Gervasio Troche
    EDITORA: Lote 42
    QUANTO: R$ 29,90 (132 págs.)

    Edição impressa

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