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    Em cenário de repressão, show do Sepultura é cancelado no Cairo

    DIOGO BERCITO
    NO CAIRO

    06/06/2016 02h20

    O show da banda brasileira de metal Sepultura, programado para sábado (4) no Cairo, foi cancelado horas antes de seu início. Segundo testemunhas, policiais interditaram o local da apresentação no oeste da cidade por volta das 20h (15h em Brasília). O show começaria às 23h30.

    Não é o primeiro contratempo envolvendo um show de metal neste país cada vez mais conservador. O Egito tem um histórico conflituoso com o gênero. Em 1997, houve perseguição a fãs do estilo. Também houve incidentes em 2012.

    Em fevereiro, o sindicato dos músicos tentou impedir uma apresentação de metal alegando que havia uma aglomeração de satanistas.

    Dede Moreira/Divulgação
    A banda brasileira de metal Sepultura no Egito, onde fariam show
    A banda brasileira de metal Sepultura no Egito, onde faria show

    A polícia egípcia afirmou à Folha que o show do Sepultura foi impedido porque os organizadores não apresentaram os papéis necessários. As autoridades negaram haver perseguição contra o metal.

    O porta-voz Hatem Fathi afirmou, porém, que pela "natureza do gênero" costuma haver reclamações de moradores dos arredores. "Há brigas, drogas, bebida."

    O jornal local "Al-Watan" publicou uma reportagem sobre a proibição de uma festa de "adoradores de Satanás", sem citar a banda brasileira.

    Eram esperadas mais de mil pessoas para o show do Sepultura, o que poderia ser a maior apresentação da história do metal no país.

    A banda já tinha sofrido um revés dias antes. Outro estabelecimento havia decidido, em cima da hora, cancelar o contrato para o show.

    A apresentação teve de mudar de local, o que pode ter dificultado a obtenção dos papéis necessários. Segundo fãs de metal, o cancelamento teria sido motivado pelo receio diante das autoridades.

    Após o impedimento no sábado, o Sepultura tentou organizar um show surpresa em torno da meia-noite em um bar. O evento não foi anunciado, mas boatos de que o governo planejava intervir levaram os membros a desistir.

    "A cena de metal é horrível aqui", disse a portuguesa Graça Carvalho, 33, que tinha esperança de ver a banda brasileira. "Acontece toda hora. A polícia impede os shows. Perseguem o metal."

    O egípcio Muhammad Omar, 33, também tentou assistir ao Sepultura. Fã do gênero, ele viajou em março a São Paulo para ver o Iron Maiden. "Não há uma cena de metal no Egito", diz ele. "Escondemos as camisetas".

    Fãs de outras partes do Oriente Médio haviam vindo ao Cairo para assistir à apresentação. O evento foi organizado pelo músico de heavy metal egípcio Nader Sadek.

    Nos últimos meses, Sadek vinha explicando à mídia local que o metal é apenas mais um gênero de música. "É peça. É palco. É entretenimento", ele disse à reportagem antes do cancelamento.

    A Folha tentou, sem sucesso, entrar em contato com Sadek após o incidente de sábado. A polícia confirmou que ele foi levado à delegacia para esclarecimentos.

    COMPREENSÃO

    A Folha havia se reunido na manhã de sábado com os membros do Sepultura. Ciente dos desafios no Egito, o guitarrista Andreas Kisser, 47, disse que "é sempre difícil que entendam o que fazemos, foi assim no Brasil". "Essa apresentação poderia abrir portas e ajudar as pessoas a entender que fazemos arte."

    Em mais de três décadas de carreira, o Sepultura faria no sábado o seu primeiro show no Egito. Mas a banda é conhecida entre fãs de metal no país. Em 2011, durante a revolução que destronou o ditador Hosni Mubarak, a música "Refuse/Resist" foi lembrada por ativistas.

    "O metal é uma ótima maneira de expressar suas frustrações, suar. É explosivo e saudável", diz o guitarrista.

    Kisser tem um antigo interesse pelo Egito. Essa foi a sua primeira visita ao país, mas em 1984 ele havia montado com colegas da escola uma banda chamada Esfinge, de covers de metal.

    HISTÓRICO

    Caso se confirme que o impedimento da apresentação do Sepultura tenha sido motivado pela perseguição ao metal no Egito, esse terá sido um entre diversos episódios de crescente conservadorismo e repressão à cultura no país.

    Entre os exemplos recentes está o fechamento da galeria Townhouse. Montado em 1998, o espaço reunia expoentes artísticos do Oriente Médio –até ser interditado pelo governo egípcio em 2015, sob alegações de irregularidades administrativas.

    Houve também uma tentativa de demolir o escritório da Townhouse, uma antiga casa no centro do Cairo. Desde então, os responsáveis por essa galeria têm tentado negociar o retorno gradual de suas atividades, que incluem oficinas com a comunidade local e apresentações.

    Outro caso marcante é a prisão do escritor Ahmed Naji, autor do livro "Istakhdem al-Haya" (usando a vida, em árabe). A obra foi considerada danosa à moral pública, por tratar de sexo em um trecho. Houve episódios semelhantes nos últimos anos.

    A sociedade egípcia tem se mostrado cada vez mais conservadora, e decisões oficiais contra artistas satisfazem setores mais religiosos da população. Há uma delicada relação entre governo e religião, no Egito, desde a remoção do islamita Mohammed Mursi da presidência em 2013.

    Mursi fora eleito após a revolução de 2011, que derrubou o então ditador Hosni Mubarak. Seu governo foi bastante impopular, e milhões de pessoas foram às ruas em 2013 para pedir sua saída. O Exército deu o empurrão que encerrou esse mandato de vez.

    Um ano depois, o militar Abdel Fattah al-Sisi foi eleito presidente do Egito, cargo que ele ocupa desde então.

    Há hoje incidentes envolvendo grupos minoritários, incluindo cristãos e homossexuais, mas o governo é popular entre parte da nação –que vê em Sisi a mão forte necessária para conduzir o país em tempos de instabilidade política e econômica.

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