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    CRÍTICA

    Narcisismo em poemas brinca com a vaidade nas redes sociais

    LEONARDO GANDOLFI
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    14/06/2016 02h50

    A violência no mundo árabe ocupa um lugar quase sempre seguro em nossas vidas: o noticiário. Raramente entramos em contato com o ponto de vista dos envolvidos.

    Em seu livro, Abud Said se utiliza de seu perfil no Facebook para criar uma voz que fala de dentro dos acontecimentos na Síria. Por outro lado, o registro usado no livro não poderia nos ser mais próximo. No rastro da rede, o poeta põe em primeiro plano uma noção de comunidade cujos afetos e identidades giram em torno de "curtidas" e "solicitações de amizade", deslocando a experiência da guerra.

    Seus relacionamentos virtuais não são menos concretos que outras formas de convívio: "Eu te amo / só quando você está online", escreve. É pela fragilidade das relações que o texto procura se situar e dizer a violência. Usando uma expressão cara ao Facebook, trata-se mais de "compartilhar" a guerra do que de noticiá-la.

    Divulgação/Eran Wolff
    O escritor sírio Abud Said Crédito Divulgação/Eran Wolff ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    O escritor sírio Abud Said

    As palavras de Said, porém, não se são um testemunho linear, já que nelas há dissonância. No livro, a identidade fluida na internet e a experiência do conflito militar misturam-se com uma consciência típica de certa poesia moderna que, caricatamente, ele faz questão de combater: "quem é Baudelaire? Um poeta???".

    Com o perfil do personagem-autor sendo utilizado por mais de uma pessoa, em certo momento lê-se: "Eu sou Ibrahim. Estas curtidas que eu dou aqui e ali / não necessariamente refletem o gosto do meu amo, Abu Said". Ao tornar indecisos os limites entre uma voz e outra, somos avisados: "Aquele que às vezes vem aqui e escreve 'coma merda' não sou eu".

    Os momentos narcisistas, em sua grande maioria, são irônicos e brincam com a autocelebração corrente no mundo virtual. Por outro lado, em alguns instantes, tais passagens podem soar mais como elogio da autopromoção do que exatamente como crítica. Tudo isso, porém, se dá de modo vacilante. O caminho que vai da rede social para a mídia do livro embaralha os protocolos de leitura.

    O Cara Mais Esperto Do Facebook
    Abud Said
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    Nesse sentido, a hesitação da primeira pessoa do singular desestabiliza a voz, permitindo que os posts-poemas assumam vários registros. E os mais interessantes são aqueles em que a experiência do conflito é indissociável das relações afetivas à distância: "Nas manifestações, quando grito no meio da multidão 'Liberdade para sempre! Goste você ou não, Assad!'/ pego meu celular / abro, fecho e digo: quem dera ela me ligasse!!!"

    Em outro episódio,o poeta corre pela rua para chegar em casa rápido. Com isso, atrai uma multidão de olhares assustados e condenatórios. Na guerra, alguém com tanta pressa significa algo. Uma pequena e pessoal revolução acaba de ocorrer: "tudo o que aconteceu foi que minha namorada ficou online", diz ele.

    O CARA MAIS ESPERTO DO FACEBOOK
    AUTOR Abud Said
    TRADUÇÃO Pedro Martins Criado
    EDITORA 34
    QUANTO R$ 38,00 (95 págs.)

    LEONARDO GANDOLFI é professor de Literatura Portuguesa na Unifesp

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