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    Nos rastro de obras olímpicas, artistas ocupam espaços abandonados do Rio

    SILAS MARTÍ
    ENVIADO ESPECIAL AO RIO

    26/06/2016 02h07

    No topo da torre H, um prédio de 37 andares abandonado há mais de três décadas, está uma cama elástica. Moderninhos ali fazem fila para pular e perder o chão. Lá do alto, a Barra da Tijuca é uma miniatura de piscinas e parquinhos gradeados atravessados por autopistas em construção –o abismo em que se transformou esse pedaço do Rio às vésperas da Olimpíada.

    "Quando você perde a perspectiva, gera essa aflição. Você não vê toda a merda que está acontecendo", diz Igor Vidor, artista que levou o pula-pula até ali. "Aqui parece que fazer a cidade é brincar de casinha. Tem o Parque Olímpico, a Vila Autódromo, todas essas obras superfaturadas."

    Nas últimas semanas, esse e outros lugares esquecidos, abandonados ou negligenciados do Rio viraram plataforma de observação de uma metrópole em transe. Mais do que uma seleção de obras, a segunda edição da mostra "Permanências e Destruições" –a primeira aconteceu há um ano e meio– voltou a dissecar os vazios e ruínas desse lugar que vive uma metamorfose por causa dos Jogos Olímpicos.

    Divulgação
    Vista do alto da torre H, na Barra
    Vista do alto da torre H, na Barra

    Do outro lado da cidade, no alto do morro do Alemão, outra visão, de barracos amontoados, é o avesso do Rio alvoroçado pelo maior evento esportivo do mundo. Ali, artistas construíram uma escada para que os moradores, que antes escorregavam na encosta sem degraus, não quebrassem mais as pernas no alpinismo de todos os dias.

    Quando vista da ilha do Sol, uns pedregulhos bem no meio da baía de Guanabara onde viveu –e foi assassinada– a vedete Luz del Fuego, toda a capital, da Urca ao movimento das barcas da praça 15 de Novembro, é uma silhueta nervosa e ondulada.

    Um barquinho preso por uma corda a uma das pedras da ilha tem fones de ouvido que narram histórias de horror diante da vista deslumbrante. Na gravação, a voz do artista Jonas Arrabal fala dos operários mortos nas obras da Olimpíada e lembra aqueles que morreram na construção da ponte Rio-Niterói, uma espécie de coluna vertebral debruçada sobre o horizonte.

    "São 23 as ilhas da Guanabara. Essa no meio da baía é como uma utopia. A imagem da ilha deserta é algo que surge como refúgio", diz Arrabal. "De noite, você consegue observar a luz da cidade, os carros que cortam a civilização daqui desse pedaço de terra à deriva, quase uma ilusão."

    Nesse sentido, são muitas as utopias que se chocam aqui. Aleta Valente, outra artista acampada na ilha, descansa pelada nas pedras como fazia a antiga dona do lugar –Luz del Fuego era naturista e frases desbotadas nos muros de sua casa em ruínas lembram que ali roupas eram proibidas.

    ESQUELETO

    Enquanto isso, o esqueleto da torre na Barra é o testemunho de uma utopia fracassada. Nos anos 1960, Niemeyer e Lucio Costa desenharam 70 prédios desses para povoar essa parte da cidade num esquema de cidade-jardim –grandes edifícios rodeados de áreas verdes. Só dois foram construídos, sendo que um deles nem sequer recebeu moradores.

    Outro tipo de vida, no entanto, agora floresce ali. Sem elevadores nem luz elétrica, a torre H se transforma numa massa de concreto a ser desbravada a pé, numa escalada de tirar o fôlego. Ao longo dos andares, estão trabalhos que tentam ilustrar a ideia de ruína tanto do corpo quanto de uma construção.

    Daniel Albuquerque fotografou inscrições nos muros deixadas por invasores, entre singelos desenhos de casinhas a ameaças do Comando Vermelho, facção criminosa que assombrava a região. O alemão Anton Steenbock criou uma espécie de cabana usando parte da vegetação que começou a crescer ali nas frestas do assoalho e das paredes.

    Olhando a paisagem lá do alto, João Paulo Quintella, que organizou a mostra, tentava resumir a ideia de sabotar os escombros com arte. "Isso aqui é um mirante, e o projeto tenta desconstruir um pouco a ideia de paisagem", ele disse. "É uma visão muito nua e crua da cidade. Tem a ver com ser artista nesses espaços de abandono e descontrole."

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