• Ilustrada

    Friday, 03-May-2024 21:01:58 -03

    Pesquisa americana mostra Shakespeare como 'alpinista social'

    JENNIFER SCHUESSLER
    THE NEW YORK TIMES

    05/07/2016 17h01

    A biografia de Shakespeare há muito gira em torno de uma série de mistérios fascinantes: ele era protestante ou secretamente católico? Gay ou hétero? Amava sua mulher ou era frio e desdenhoso com relação a ela?

    Que o homem não tenha deixado cartas ou um depoimento autobiográfico em nada ajuda a dirimir essas dúvidas, e garante que os relatos de sua vida tenham frequentemente dependido de "meio centavo de fatos e quantidade intolerável de suposições", como certa vez lamentou o estudioso C. W. Scott-Giles.

    Apenas alguns poucos materiais novos relativos a Shakespeare em sua era emergiram nos últimos 100 anos. Mas agora, uma pesquisadora localizou quase uma dúzia de registros antes desconhecidos, que lançam mais luz sobre outro aspecto muito discutido do escritor: seu esforço de ascensão social.

    Marlene Bergamo/Folhapress
    Cenas da peça "A Tempestade", de Shakespeare, dirigida por Gabriel Villela
    Cenas da peça "A Tempestade", de Shakespeare, dirigida por Gabriel Villela

    Os documentos, descobertos por Heather Wolfe, curadora de manuscritos na Folger Shakespeare Library, em Washington, se relacionam a um brasão de armas conferido ao pai de Shakespeare em 1596, que atestava a condição de gentis-homens conferida a ele e seu filho.

    Considerados em conjunto com documentos anteriormente conhecidos, argumenta Wolfe, os documentos sugerem tanto o grau de interesse de Shakespeare em obter essa forma de reconhecimento - rara para um homem de teatro - e seu envolvimento muito direto em exóticas disputas burocráticas para evitar sua perda.

    Os novos registros "realmente nos ajudam a chegar mais perto de Shakespeare como homem", disse Wolfe. "Mostram-no criando uma imagem para si mesmo e construindo sua reputação de maneira muito intencional".

    James Shapiro, estudioso de Shakespeare na Universidade Colúmbia que está informado sobre as pesquisas de Wolfe, disse que as descobertas dela ajudam a iluminar aquilo que interessava a Shakespeare. "Tudo gira em torno de tentar descobrir que tipo de pessoa era ele", disse Shapiro. "Sempre que podemos substituir especulações por algo de sólido, isso é significativo".

    Os novos documentos, acrescentou Shapiro, também vêm com um bônus agradável: claramente refutam os céticos que continuam a argumentar - para a profunda exasperação da maioria dos estudiosos - que William Shakespeare, de Stratford-on-Avon, não foi de fato o autor das obras atribuídas a ele.

    João Caldas/Divulgação
    Cena de "Macbeth", do Repertório Shakespeare, com Thiago Lacerda e Giulia Gam
    Cena de "Macbeth", do Repertório Shakespeare, com Thiago Lacerda e Giulia Gam

    "Sempre foi claro que o Shakespeare de Stratford e 'Shakespeare o ator' eram a mesma pessoa", disse Shapiro. "Mas com os documentos que Heather descobriu, temos prova conclusiva".

    As descobertas de Wolfe foram iniciadas nos arquivos do College of Arms, de Londres, que abriga 10 arautos cuja função continua a ser pesquisar e conferir brasões de armas - um território de conhecimento muito especializado que os estudiosos da literatura podem ter medo de percorrer.

    "Estudar as minúcias que o Colege of Arms tem a oferecer é quase insuportável, mesmo para os estudiosos de Shakespeare", disse Shapiro. "Temos uma verdadeira dívida de gratidão para com Heather por ter se aventurado a fazê-lo".

    Wolfe disse que começou a imaginar se não haveria novos materiais a descobrir quando ela leu um livro editado por Nigel Ramsay, historiador do University College London, com o qual ela foi curadora de uma exposição heráldica na biblioteca Folger, em 2014. Em uma página, ela se espantou ao encontrar algo que jamais havia visto: um rascunho de um brasão de armas com as palavras "Shakespeare o ator", datado de cerca de 1600.

    Uma imagem semelhante portando o mesmo texto - em cópia datada de cerca de 1700 - era há muito conhecida dos estudiosos de Shakespeare (bem como daqueles que duvidam de sua autoria das obras a ele atribuídas, que em geral consideram como pouco confiável qualquer prova posterior a 1616, o ano da morte de Shakespeare). Mas o esboço anterior, do College of Arms, parece ter passado despercebido.

    Wolfe começou a procurar lá e em outros arquivos, e até agora obteve uma dúzia de imagens desconhecidas ou esquecidas do brasão de armas, em obras de referência heráldicas conhecidas como "alfabetos e ordinários". "Comecei a encontrar essas coisas em toda parte", ela disse.

    Os estudiosos sabiam há muito que o pai de Shakespeare, John, empresário e juiz de paz em Stratford, havia começado a buscar um brasão de armas por volta de 1575. Eles especularam que William teria renovado esse esforço em 1596, em nome de seu pai.

    As novas imagens que Wolfe recolheu datam todas do século 17. Mais de metade estão associadas a um brasão de armas com a inscrição "Shakespeare o ator", ou a William, e não a John.

    O material não só prova que "Shakespeare era Shakespeare", como Wolfe diz sardonicamente, mas também, argumenta a estudiosa, sublinha em que medida os contemporâneos viam aquele brasão de armas como destinado a William.

    "Os desenhos tornam muito claro que, embora Shakespeare estivesse solicitando o brasão em nome de seu pai, na verdade o que ele queria era solidificar seu status", ela afirmou.

    Shapiro disse que concorda com essa interpretação. "Todos os indícios sugerem que o brasão não era para o pai dele", afirma o historiador, "mas sim a forma pela qual Shakespeare mesmo queria ser visto".

    Alan Nelson, professor aposentado a Universidade da Califórnia em Berkeley, que contribuiu para o projeto online Shakespeare Documented, que tem a curadoria de Wolfe, disse que também considerava os argumentos dela persuasivos.

    Os novos materiais, acrescentou Nelson, "ajudam a confirmar tudo que sabemos sobre a trajetória da carreira de Shakespeare e a maneira pela qual ele se compreendia no contexto de sua sociedade".

    Mas nem todos os contemporâneos de Shakespeare aceitaram de imediato o seu novo status. Ben Jonson zombou de seu brasão de armas em "Every Man Out of His Humour", peça de 1598 na qual um caipira ingênuo é aconselhado a comprar um brasão com o lema "não sem mostarda", uma ironia para com o dístico de Shakespeare, "não sem direito". (O brasão de armas de Shakespeare era amarelo.)

    Lenise Pinheiro/Folhapress
    Os atores Chico Carvalho e Mayara Magri, durante o ensaio da peça teatral "Ricardo 3°"
    Os atores Chico Carvalho e Mayara Magri, durante o ensaio da peça teatral "Ricardo 3°"

    Ataque mais ameaçador veio em 1602 de Ralph Brooke, arauto no College of Arms que há muito estava em guerra com o arquirrival William Dethick, que detinha o título de Garter King of Arms. (Em dado momento, Brooke teria supostamente alertado Dethick, ele mesmo um homem conhecido pela violência, de que a Star Chamber [tribunal político da era elizabetana] o puniria decepando suas orelhas.)

    Naquele ano, Brooke preparou para apresentar à rainha Elizabeth 1ª uma lista de 23 "más pessoas" que haviam recebido brasões de armas indevidamente por decisão de Dethick, entre as quais "Shakespeare o ator", na forma um tanto depreciativa que Brooke decidiu empregar. (Shakespeare não foi o único acusado a ter seu trabalho descrito com desprezo: um homem a quem Brooke classificou como "encadernador de livros", aponta Wolfe, era na verdade o mestre da Stationers' Company, a prestigiosa organização que regulamentava a indústria editorial da Inglaterra.)

    Entre os documentos de Dethick,. Wolfe encontrou cartas de pessoas indignadas pela contestação aos seus brasões de armas, bem como notas apontando que algumas haviam retirado suas candidaturas a eles.

    Embora não haja registro sobrevivente de respostas de Shakespeare, Wolfe argumenta que as reações intensas de outros acusados sugerem que ele deve ter sabido da controvérsia, e provavelmente tomado medidas de proteção ao seu status.

    Algumas das pessoas cujas cartas sobreviveram viviam fora de Londres, ela aponta. "Eles não poderiam ter simplesmente conversado com Dethick, como Shakespeare poderia".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024