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    crítica

    Theodor Dalrymple nos critica com leveza sarcástica em ensaios

    JOÃO PEREIRA COUTINHO
    COLUNISTA DA FOLHA

    09/07/2016 02h11

    Pensar contra as nossas convicções: haverá maior virtude intelectual? Nietzsche, que gostava pouco da palavra "virtude", achava que não. Eu tentei.

    Recebi "Qualquer Coisa Serve", o último livro de Theodore Dalrymple no Brasil, e fiz um esforço. "Vais ler esse livro procurando defeitos", ordenei à minha cabeça. E tentei apagar da memória a admiração que sentia por Dalrymple, formulando hipóteses heréticas. "Aqui está um velho rezinga que gosta de criticar o mundo moderno e blá-blá-blá."

    Quando termino o livro, estou derrotado. Dalrymple é um notável ensaísta. Mesmo quando falha. Ou sobretudo quando.

    No prefácio, conta o dr. Dalrymple que existe um tema que sempre o fascinou: o mal. Não apenas o mal em sentido amplo, massificado, genocida. Mas o "mal banal", anônimo, cotidiano.

    Uma parte substancial dos ensaios trata do assunto: seja em Ruanda, nas "banlieuses" de Paris ou no sistema prisional britânico, que Dalrymple conheceu bem como médico, lá encontramos descrições pungentes de horror e brutalidade.

    Mas Dalrymple não consegue chegar a uma explicação sobre o "mistério". Duas certezas, apenas: o mal é, precisamente, um mistério; e, claro, não existem teorias sociológicas, econômicas, neuronais que possam explicar, muito menos justificar, essa forma de existência. É pouco? Fato. Mas a incapacidade de Dalrymple em encontrar uma hipótese para o problema filosófico (e teológico) "par excellence" já diz muito sobre a dimensão desse problema.

    O melhor de Dalrymple, porém, não está na reflexão metafísica profunda. Encontra-se na observação empírica (e na meditação pessoal), na qual uma mistura perfeita de elegância estilística, erudição e sentido de humor o tornam incomparável.

    Exemplo: o crime é a única forma dos mais pobres ajustarem contas com as elites? Dalrymple contesta a fantasia cripto-marxista com uma observação singela: as maiores vítimas do crime não são os ricos; são os pobres, que vivem permanentemente dominados pelo medo. "É muito frequente ver dois assaltantes brigando na prisão porque cada um havia assaltado a casa do outro", escreve o autor.

    De resto, Dalrymple critica as nossas idiossincrasias com uma leveza sardônica digna de Jane Austen. Sim, a celebração política e social da "juventude" tem qualquer coisa de fascista. Sim, "a doutrina dos direitos colonizou a cabeça das pessoas" (mas não a doutrina dos deveres). Sim, existem três temas que normalmente dão polêmica nos jornais e que são o retrato da intolerância contemporânea: "arte moderna, síndrome de fadiga crônica e religião" (eu acrescento o fumo e o conflito israelense-palestino).

    E, sim, mil vezes sim: como é brega o fascínio moderno pela gastronomia multicultural. Escreve Dalrymple: "com enorme frequência, quando me perguntam se gosto do prato nacional do Laos ou da Suazilândia, digo que ele está sempre na minha mesa, com receio de parecer provinciano e pouco sofisticado."

    Escrevi que Dalrymple é incomparável na meditação pessoal. Corrijo: na confissão pessoal. Porque o autor não se furta ao seu próprio chicote –uma lição que ele aprendeu com Montaigne. Em vários momentos da vida, ele reconhece ter sido pedante, covarde, ressentido.

    Qualquer Coisa Serve
    Theodore Dalrymple
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    E, sobre o ressentimento, o livro termina com um texto luminoso sobre a onipresença dele na nossa era –essa permanente busca de justificar as nossas falhas de vida ou de caráter com a ação, real ou imaginária, de terceiros.

    Com o mesmo humor, Dalrymple sugere até que as universidades tenham uma Faculdade de Estudos do Ressentimento. O acesso seria fácil: "Tudo o que você precisaria fazer seria criticar seus pais num exame público".

    Pode parecer piada. Mas olhando os programas de muitas universidades, onde o Ocidente "branco, machista e colonizador" assume essa figura paterna, a sugestão de Dalrymple já está plenamente em marcha.

    QUALQUER COISA SERVE
    AUTOR: Theodor Dalrymple
    TRADUÇÃO: Hugo Lugone
    EDITORA: É Realizações
    QUANTO: R$ 24,95 (272 págs.)

    Edição impressa

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