Pensar contra as nossas convicções: haverá maior virtude intelectual? Nietzsche, que gostava pouco da palavra "virtude", achava que não. Eu tentei.
Recebi "Qualquer Coisa Serve", o último livro de Theodore Dalrymple no Brasil, e fiz um esforço. "Vais ler esse livro procurando defeitos", ordenei à minha cabeça. E tentei apagar da memória a admiração que sentia por Dalrymple, formulando hipóteses heréticas. "Aqui está um velho rezinga que gosta de criticar o mundo moderno e blá-blá-blá."
Quando termino o livro, estou derrotado. Dalrymple é um notável ensaísta. Mesmo quando falha. Ou sobretudo quando.
No prefácio, conta o dr. Dalrymple que existe um tema que sempre o fascinou: o mal. Não apenas o mal em sentido amplo, massificado, genocida. Mas o "mal banal", anônimo, cotidiano.
Uma parte substancial dos ensaios trata do assunto: seja em Ruanda, nas "banlieuses" de Paris ou no sistema prisional britânico, que Dalrymple conheceu bem como médico, lá encontramos descrições pungentes de horror e brutalidade.
Mas Dalrymple não consegue chegar a uma explicação sobre o "mistério". Duas certezas, apenas: o mal é, precisamente, um mistério; e, claro, não existem teorias sociológicas, econômicas, neuronais que possam explicar, muito menos justificar, essa forma de existência. É pouco? Fato. Mas a incapacidade de Dalrymple em encontrar uma hipótese para o problema filosófico (e teológico) "par excellence" já diz muito sobre a dimensão desse problema.
O melhor de Dalrymple, porém, não está na reflexão metafísica profunda. Encontra-se na observação empírica (e na meditação pessoal), na qual uma mistura perfeita de elegância estilística, erudição e sentido de humor o tornam incomparável.
Exemplo: o crime é a única forma dos mais pobres ajustarem contas com as elites? Dalrymple contesta a fantasia cripto-marxista com uma observação singela: as maiores vítimas do crime não são os ricos; são os pobres, que vivem permanentemente dominados pelo medo. "É muito frequente ver dois assaltantes brigando na prisão porque cada um havia assaltado a casa do outro", escreve o autor.
De resto, Dalrymple critica as nossas idiossincrasias com uma leveza sardônica digna de Jane Austen. Sim, a celebração política e social da "juventude" tem qualquer coisa de fascista. Sim, "a doutrina dos direitos colonizou a cabeça das pessoas" (mas não a doutrina dos deveres). Sim, existem três temas que normalmente dão polêmica nos jornais e que são o retrato da intolerância contemporânea: "arte moderna, síndrome de fadiga crônica e religião" (eu acrescento o fumo e o conflito israelense-palestino).
E, sim, mil vezes sim: como é brega o fascínio moderno pela gastronomia multicultural. Escreve Dalrymple: "com enorme frequência, quando me perguntam se gosto do prato nacional do Laos ou da Suazilândia, digo que ele está sempre na minha mesa, com receio de parecer provinciano e pouco sofisticado."
Escrevi que Dalrymple é incomparável na meditação pessoal. Corrijo: na confissão pessoal. Porque o autor não se furta ao seu próprio chicote –uma lição que ele aprendeu com Montaigne. Em vários momentos da vida, ele reconhece ter sido pedante, covarde, ressentido.
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E, sobre o ressentimento, o livro termina com um texto luminoso sobre a onipresença dele na nossa era –essa permanente busca de justificar as nossas falhas de vida ou de caráter com a ação, real ou imaginária, de terceiros.
Com o mesmo humor, Dalrymple sugere até que as universidades tenham uma Faculdade de Estudos do Ressentimento. O acesso seria fácil: "Tudo o que você precisaria fazer seria criticar seus pais num exame público".
Pode parecer piada. Mas olhando os programas de muitas universidades, onde o Ocidente "branco, machista e colonizador" assume essa figura paterna, a sugestão de Dalrymple já está plenamente em marcha.