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    Antologia de humor atravessa 500 anos de história e literatura brasileiras

    ALVARO COSTA E SILVA
    COLUNISTA DA FOLHA

    23/07/2016 02h01

    Dominio Publico
    Retrato de Machado de Assis feito por Marc Ferrez. CRÃDITO: Domínio público ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Retrato de Machado de Assis feito por Marc Ferrez

    "O Melhor do Humor Brasileiro" —ambiciosa antologia com que o escritor Flávio Moreira da Costa volta ao formato que o tornou conhecido do grande público— atravessa cinco séculos da nossa história e literatura. Vai de uma cantoria canibal inesperadamente irônica de índios que viviam em torno da baía de Guanabara, citada por Montaigne nos "Ensaios", até a história do Gênesis revista e ampliada por Antonio Prata, colunista da Folha.

    O autor que mais dá as caras é Machado de Assis —dez vezes—, com crônicas, contos e trechos de "Memórias Póstumas de Brás Cubas": "Mas o meu Machado não é o mesmo que as elites brasileiras vêm tentando, há mais de um século, domesticar e até mesmo embranquecer, o que não conseguiram com Lima Barreto, outra presença na antologia. Por que o Lima nunca foi homenageado na Flip?", pergunta Flávio, que ainda destaca a escolha de dois paulistas ligados ao Modernismo:

    "Sem Oswald de Andrade e António de Alcântara Machado, com sua irreverência e crítica cultural, essa antologia seria diferente, talvez mais acadêmica e menos engraçada e provocadora. Eu queria um livro vivo que revelasse para nós mesmos um Brasil sem máscaras ou disfarces".

    Para o antologista, a graça pode estar na desgraça. Ou no jeito melancólico que, por vezes, o humor assume entre nós, herança de Portugal, da África e dos índios. "Uma melancolia que é consequência, basta pensar na miséria dos tristes trópicos. Um humor compensatório. Mas não creio que o humor se defina por uma ideia de nação. Podemos até falar no humor judaico que, ainda bem, contaminou o humor americano, ou no 'wit' inglês, que se espalhou pelo mundo e bateu no Machado de Assis."

    Para armar o melhor do humor nacional, Flávio optou por um "viés agregador", como define. Daí que os pioneiros Gregório de Matos e Manuel Antônio de Almeida, passando por Monteiro Lobato, Rubem Braga, Murilo Rubião e João Ubaldo Ribeiro, convivem com o frasista e polemista Carlos de Laet ou o jurista e político Ruy Barbosa. E até com letras de sambas de Noel Rosa ("Conversa de Botequim", "Gago Apaixonado").

    "Eu quis tratar de todos os gêneros. Noel, um exemplo do jeito carioca de levar a vida, estava em consonância com a modernidade do país ao compor versos como 'O cinema falado/ É o grande culpado/ Da transformação'. Já o Ruy Barbosa entrou por trechos de humor que surgem no meio dos seus discursos parlamentares."

    E o que não tem graça no Brasil de hoje? "A caricatura que nos tornamos. Este confronto entre petralhas e coxinhas. Um país que já foi do futebol e hoje é da corrupção. Isso não tem graça nenhuma", critica.

    PERDEU OS CONTOS

    O gaúcho Flávio Moreira da Costa, 74, já fez mais de 30 antologias: "Perdi os contos. Ou as contas", brinca. As mais conhecidas e bem sucedidas em vendas foram lançadas entre os anos de 2000 e 2010 —melhores histórias de humor, terror, horror, crime e mistério, eróticas, fantásticas. Cães e gatos, futebol, música popular brasileira —tudo lhe serviu de inspiração.

    Inovou com o excelente "Os Melhores Contos de Loucura". "Intimidades Célebres: O Livro dos Diários" continua inédito por conta de uma pendência com a Ediouro que se arrasta há cinco anos. Neste mês, será relançado "Os Melhores Contos Fantásticos" (Nova Fronteira).

    Contista e romancista premiado ("O Equilibrista do Arame Farpado" ganhou o Jabuti de romance e "Nem Todo Canário é Belga", o de contos), Flávio conta que as antologias o ajudaram a se profissionalizar e ganhar a vida como escritor.

    "Fiz a primeira na adolescência, uma antologia do conto gaúcho, que me deu a alegria de me tornar amigo de Erico Verissimo. Mas precisava descobrir os novos. Lembro de ir à faculdade de medicina de Porto Alegre e encontrar um estudante e contista iniciante. Era o Moacyr Scliar."

    O Melhor Do Humor Brasileiro
    Flávio Moreira da Costa
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    Na apresentação, o organizador ressalva que usou "os textos que foram possíveis (inclusive legalmente)", referindo-se aos direitos autorais. E, sutilmente, alinhou nas referências bibliográficas no fim do volume aqueles que ficaram de fora —como dois poemas de Drummond, "Política Literária" e "Quadrilha".

    "A rigor, os problemas precisam ser resolvidos entre a editora e outras editoras, herdeiros desligados ou desinformados, e agentes profissionais ou improvisados. Se não houver compreensão, paciência", resigna-se.
    "Por isso, a crítica mais óbvia —por que fulano ficou de fora?— não pode ser levada a sério. Não existe antologia sem ausências, voluntárias ou involuntárias."

    Só para constar (e não perder o humor): este repórter sentiu falta de Ivan Lessa e Reinaldo Moraes.

    O MELHOR DO HUMOR BRASILEIRO
    ORGANIZADOR Flávio M. da Costa
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO R$ 74,90 (456 págs.)

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    TRECHOS

    Divulgação
    o escritor capixaba Rubem Braga, em foto que fará parte da exposição "Ruben raga - O Fazendeiro do Amor", em Vitória, Espírito Santo. (Foto: Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    O escritor capixaba Rubem Braga

    Rubem Braga

    —Is it a book?
    Sorri da pergunta: tenho vivido parte da minha vida no meio de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de distinguir um livro à primeira vista no meio de quaisquer outros objetos, sejam eles garrafas, tijolos ou cerejas maduras —sejam quais forem. Aquilo não era um livro, e mesmo supondo que houvesse livros encadernados com louça, aquilo não seria um deles (...).

    Divulgação
    O jornalista Sérgio Porto, também conhecido como Stanislaw Ponte Preta, carrega livros sobre jazz, uma de sua grandes paixões. (Foto Divulgação) *** DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM ***
    O jornalista Sérgio Porto, também conhecido como Stanislaw Ponte Preta

    Stanislaw Ponte Preta

    A hoje encanecida senhora lamentou profundamente a inépcia do marido (...), mudou-se para Londres, aproveitando a deixa para disputar a primeira travessia a nado do Canal da Mancha. Houve quem desaprovasse a decisão, dizendo que não ficava bem uma jovem de família se meter com o Canal da Mancha. (...)
    —O Canal da Mancha não pode manchar a minha reputação. Na minha terra, sim, tem um canal que mancha muito mais.

    Acervo UH/Folhapress
    LOCAL DESCONHECIDO, 16-04-1958: O jornalista e escritor Barão de Itararé, durante entrevista ao jornal "Última Hora". (Foto: Acervo UH/Folhapress)
    O jornalista e escritor Barão de Itararé

    Barão de Itararé

    O homem que se vende recebe sempre mais do que vale
    Uma chácara por progredir até chegar a estado de sítio
    Tudo seria fácil se não fossem as dificuldades
    Negociata é um bom negócio para o qual não fomos convidados
    Senso de humor é o sentimento que faz você rir daquilo que o deixaria louco de raiva se acontecesse com você
    O que se leva dessa vida é a vida que a gente leva

    Reprodução
    Música: o músico Noel Rosa. (Foto: Reprodução)
    O músico Noel Rosa

    Noel Rosa

    Mu... mu... mulher
    Em mim fiz... fizeste um estrago
    Eu de nervoso
    Esto.. tou fi... ficando gago
    Não po... posso
    Com a cru... crueldade
    Da saudade
    Que... que mal... maldade
    Vi... vivo sem afago
    Tem tem... tem pe... pena
    Deste mo... mo... moribundo
    Que já virou va... va... va... va... ga... gabundo

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