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    Crítica

    Narrador-delator sem culpa torna 'Cabo de Guerra' perturbador

    PAULA SPERB
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    30/07/2016 02h03

    O ponto de vista de um delator é raro nas obras que abordam o período da ditadura militar brasileira. Justamente por ser incomum, este é o primeiro mérito de "Cabo de Guerra", romance recém-lançado de Ivone Benedetti.

    Tradutora prestigiada e professora, Ivone mostra total domínio da técnica da narrativa na sua terceira obra de ficção. A escritora também publicou "Immaculada"(2009), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2010, e o livro de contos "Tenho um Cavalo Alfaraz" (2011).

    "Cabo de Guerra" é narrado em primeira pessoa pelo personagem principal: um rapaz que deixa a Bahia para estudar em São Paulo na década de 1960 e torna-se um "cachorro", modo como eram chamados os agentes do governo infiltrados nos grupos de esquerda.

    Não se sabe o nome desse personagem "sinistro", como definiu Bernardo Kucinski no texto da orelha do livro. Aos 24 anos, o rapaz envolve-se com militantes comunistas. Apesar de estudar a doutrina e fazer de seu apartamento uma espécie de "aparelho", ele não tem convicções.

    Quando é levado ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social ) sucumbe facilmente à tortura e passa a agir como infiltrado. A súbita mudança instiga a refletir sobre a motivação para colaborar com a violência e tortura dos seus, até então, amigos.

    É precisamente esse o aspecto que torna o livro um tanto perturbador –função que se espera da literatura, frisa-se. Porque o que mais atordoa não é a brutalidade dos militares, mas a passividade do protagonista. A ausência de culpa sobre os atos que levam à morte de diversas pessoas é transtornante.

    O narrador criado pro Ivone escreve em um tempo presente, em 2009, e consegue conduzir a leitura por fatos ocorridos nos quarenta anos anteriores. A tarefa de "ir e vir" no tempo é árdua e executada de modo primoroso.

    No círculo de relações do personagem estão militantes de esquerda, militares, um mafioso e diversas mulheres que entram e saem de sua vida. Sua irmã, Mariquinha, é uma exceção. Dedicada e incansável, ela acompanha o irmão na decadência marcada por abuso de álcool, morar na rua e depressão.

    O cabo de guerra do título deveria ser a consciência do personagem, que surge difusa e tardiamente. Aos 64 anos, o homem ainda não mostra indícios claros de remorso. Como o próprio diz, em certa passagem do livro, "para quem sempre se divide não há ponto final".

    CABO DE GUERRA
    AUTOR Ivone Benedetti
    EDITORA Boitempo
    QUANTO: R$ 54 (604 págs.)

    Edição impressa

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