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    Em terras caipiras, festival em Santa Cruz do Rio Pardo é reduto do rock

    RODOLFO VIANA
    ENVIADO ESPECIAL A SANTA CRUZ DO RIO PARDO (SP)

    02/08/2016 02h01

    Thiago Mazzante
    Derrick Green, vocalista do Sepultura, durante show no Rock Rio Pardo 2016. CRÉDITO: Thiago Mazzante ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Derrick Green, vocalista do Sepultura, durante show no Rock Rio Pardo 2016

    Tonico e Tinoco choram o fim da vida sertaneja no rádio, enquanto o táxi cruza o pontilhão do rio castanho que batizou a cidade. A margem de lá não é diferente da margem de cá: enfileiram-se casas de muro baixo com portão de grade —elas quase nunca passam do térreo. Do lado esquerdo, uma senhorinha lava a calçada; num gramado próximo ao Recinto de Exposições José Rosso, adolescentes jogam bola e não ligam para o cavalo que pasta a poucos metros.

    Para além do recinto, um tapete em tons de verde se estende até sumir de vista. A 346 quilômetros da capital paulista, Santa Cruz do Rio Pardo é uma gigante: tem 1.114 km² quadrados, dos quais 72% são tomados por plantações de soja, milho, cana. A área corresponde a três quartos do tamanho de São Paulo mas, com menos de 47 mil habitantes, a população não chega à do bairro paulistano do Morumbi.

    Santa Cruz do Rio Pardo

    As vozes de Tonico e Tinoco são abafadas pelo barulho de uma bateria frenética. A equipe começa a passar o som para os shows de domingo (31), segundo dia do Rock Rio Pardo, festival gratuito realizado anualmente no município. No último fim de semana de julho, tocaram 14 bandas da cidade e da região, além de Titãs e Sepultura.

    No palco, entre covers e canções próprias "made in interior", os músicos passaram pelas searas do rock brasiliense de 1980, do grunge de 1990, do punk enlatado de 2000, do metal que atravessou essas décadas entre luz e trevas.

    A mistura levou ao recinto mais de 35 mil pessoas, segundo a PM. "[Ter esse público] Foi fruto de teimosia", diz Luciano Pimentel, o Barry, que integra a Comissão de Bandas, organizadora do festival.

    Na cidade de bares que estampam cartazes de duplas sertanejas e rádios que emanam canções caipiras o dia inteiro, o rock ainda sofre do "estigma de música de maloqueiro, drogado e satanista", diz Carlos Eduardo Gonçalves, professor do ensino médio.

    Rodolfo Viana/Folhapress
    Gustavo Pumenta e Larissa Pinhata, góticos no Rock Rio Pardo 2016. CRÉDITO: Rodolfo Viana/Folhapress ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Gustavo Pimenta e Larissa Pinhata, góticos no festival

    Gustavo Pimenta, aluno da Unesp de Marília, sente esse preconceito na pele -que, no Rock Rio Pardo, estava coberta por um sobretudo pesado, apesar do sol de 28ºC. "Por eu usar maquiagem a galera zoa bastante", diz o gótico.

    "Hoje mesmo ele saiu assim e o pessoal o encarava como se fosse uma aberração", completa a namorada, Larissa Pinhata, estudante de informática da Etec de Santa Cruz.

    E as "aberrações" são muitas. A fauna vai de garotos com espinha e camiseta da Legião Urbana a headbangers que ostentam Judas Priest nos trajes e pulseiras cravejadas; punks de moicano e roupas esfarrapadas a galeras de motoclubes com caveiras no colete de couro puído; meninas mal saídas da adolescência, com seus cabelos coloridos, a roqueiras cinquentonas, com seus cabelos grisalhos. Há muitas famílias, também, com bebês no colo ou em carrinhos.

    Barry lembra que, em 2003 —ano da primeira edição—, "só existia sertanejo na cidade, e uns dez músicos [de rock] que não tinham onde tocar". Essa comunidade roqueira órfã de espaço começou a frequentar um bar de um homem que, até pouco tempo antes, usava chapéu, calçava botina e entregava leite de porta em porta: Celso Andrade, o Cersão.

    Rodolfo Viana/Folhapress
    Celso Andrade, o Cersão, no bar onde nasceu o Rock Rio Pardo. CRÉDITO: Rodolfo Viana/Folhapress ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Celso Andrade, o Cersão, no bar montado em seu sítio

    "Eu queria a madrugada", diz Cersão, aos 60 anos. Montou o primeiro bar, no centro, em 2002. Quase foi à falência, até que "o pessoal [do rock] passou a frequentar".

    Foi uma combinação explosiva: um bar sem clientes + uma galera sem ter onde curtir + um dono que não se importava se os roqueiros ligassem o som do carro, levassem uns CDs para tocar ou aparecessem com uma banda completa, do nada, num domingo à tarde. "Foi meio absurdo", lembra.

    Por dois anos, o bar do Cersão foi o único espaço dedicado ao rock em solo santa-cruzense. "Até que deu problema de barulho e tive de fechar as portas", diz. Mudou o boteco para o sítio onde mora. A comunidade roqueira o seguiu.

    Barry lembra que, "com um lugar para tocar, gente nova passou a aprender um instrumento". Um deles foi Gonçalves. Aos 15 anos, começou a frequentar o bar do Cersão. "Não sabia tocar porra nenhuma, mas via a galera lá e pensava: 'Pô, eu posso tocar também'", diz o atual baixista da Rolling Porks.

    Em meio a essa profusão, "a gente foi atrás de um lugar, chamou os amigos... E assim surgiu o festival", diz Barry. O público da primeira edição? "Umas 200 pessoas."

    O número cresceu ano a ano, mas o boom foi em 2013: a prefeitura passou a apoiar o evento financeiramente, com o plano de "transformar o município em cidade turística", diz Mauricio Salemme Corrêa, secretário de Cultura e baterista da Black Tie.

    Para esta edição, a secretaria liberou cerca de R$ 170 mil dos R$ 250 mil de orçamento do festival. O restante foi angariado junto a empresas locais. "A cada ano está mais fácil ter patrocínio porque o preconceito está diminuindo", diz Barry, "e as marcas já não acham que rock seja coisa de drogado e pervertido".

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