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    Pavilhão tem seleção acertada, mas erra ao fetichizar experiência negra

    SILAS MARTI
    ENVIADO A VENEZA

    08/08/2016 02h01

    Uma sensação incômoda atravessa o pavilhão brasileiro nesta Bienal de Arquitetura de Veneza. Logo na entrada, fotografias nas paredes traçam um paralelo entre a marcha das Diretas Já e as manifestações que varreram o país em junho de três anos atrás.

    Também está ali a comparação da Casa da Flor, obra que Gabriel Joaquim dos Santos construiu amalgamando detritos e objetos aleatórios à estrutura de sua casa em São Pedro da Aldeia, no Rio de Janeiro, e a mansão que Lina Bo Bardi desenhou para a amiga Valéria Cirell, em São Paulo.

    Divulgação
    Casa da Vila Matilde, projeto do escritório Terra e Tuma, que estará no pavilhão brasileiro da próxima Bienal de Arquitetura de Veneza*
    Casa da Vila Matilde, projeto do escritório Terra e Tuma, que estará no pavilhão brasileiro da próxima Bienal de Arquitetura de Veneza

    Retalhos de tecido translúcido pendem do teto formando um pequeno labirinto, talvez em alusão à forma como a arquitetura vernacular, ou do povo, está só a uma fina membrana de distância da arquitetura com pretensões autorais.

    Santos era um operário negro, filho de uma índia e de um ex-escravo. Bo Bardi era uma arquiteta italiana com trânsito pela aristocracia paulistana. De certa forma, eles representam os dois extremos da sociedade que o pavilhão do país descreve em Veneza como "mestiça, tropical, hedonista, vanguardista, leve e intensa".

    Quando anunciou a lista de projetos que levaria à mostra italiana, Washington Fajardo disse que se baseou na "cultura negra como matriz fundamental para o espaço público brasileiro" e num "resgate do artesanal".

    Na seleção oficial estão obras de impacto, como o conjunto habitacional Jardim Edite e a casa construída para uma diarista na Vila Matilde, ambos em São Paulo, a revista "Piseagrama", de Belo Horizonte, e projetos que investigam a história dos negros na formação do Rio.

    Fajardo acerta ao buscar ideias livres do cânone moderno, capazes de provocar debates que vão além da escala delicada que assumem no território. Mas erra ao afogar tudo num discurso deslumbrado, calcado em platitudes como a ideia de que a identidade brasileira se ancora no improviso, em "soluções incompletas", ou seja, na gambiarra.

    Sua exaltação da cultura negra como força motriz de um novo urbanismo aqui esbarra na propaganda, já que Fajardo trabalhou nas reformas da zona portuária do Rio em preparação para a Olimpíada. A ideia, em nada reprovável, de resgatar a memória dos antigos escravos dessa região e criar ali um circuito cultural aflora em Veneza com ranço de campanha política.

    Mais incômoda é a imagem de garotos negros brincando no parque Madureira, no Rio, outro projeto na mostra. Esses corpos estampados na parede parecem ali instrumentalizados, como que sustentando um discurso só pela pele, e escancaram a fragilidade de um pavilhão que mais fetichiza o negro do que celebra sua importância como um dos pilares da identidade do país.

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