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    CRÍTICA

    Afonso Cruz distancia-se do colonialismo em novo romance

    LEONARDO GANDOLFI
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    09/08/2016 02h40

    Afonso Cruz, autor português de "Jesus Cristo Bebia Cerveja" e do recente "Flores", acaba de ter mais um de seus livros publicado no Brasil. Em "O Pintor Debaixo do Lava-Loiças", somos apresentados ao artista, soldado e exilado Josef Sors.

    A narrativa segue viagem por lugares como Bratislava, Viena e Lisboa. E, entre os momentos-chave, chamam atenção a participação do pintor judeu na Primeira Guerra, sua saída da Europa e seu retorno em plena Segunda Guerra.

    Em meio a essas páginas, é difícil não lembrar da tetralogia "O Reino", do também português Gonçalo M. Tavares. Nela, de forma semelhante, encontramos personagens com nomes de origem judaica que, em tempos de conflito, apelam para um pensamento lógico que dá sentido à vida.

    Afonso Cruz
    O Pintor Debaixo do Lava-Loiças
    Ilustração de 'O Pintor Debaixo do Lava-Loiças', de Afonso Cruz

    Na série de Tavares, tal elogio da lógica anda de mãos dadas com certo tom aforístico de narrar. Esses dois elementos também estão muito presentes no livro de Afonso Cruz, mas desempenham papel diferente. Se, na tetralogia de Tavares, eles colaboram para construir um universo alegórico, no romance de Afonso Cruz o objetivo é efabular uma história, como ele mesmo diz, baseada num caso que aconteceu com seus avós.

    No início, ao saber que o filho estaria fadado a ser pintor, a mãe do protagonista se entristece, porque ser artista seria olhar "o mundo como se o visse pela primeira vez". E, segundo ela, não há nada pior do que esse contínuo começar de novo: "Eu quando olho para as coisas quero que elas sejam familiares".

    Quase tudo o que Josef Sors fala tem um quê de inaugural: "Caim e Abel eram irmãos para se demonstrar que todos os homicídios são cometidos entre irmãos", diz ao amigo dentro de uma trincheira.

    De forma a decepcionar a mãe de Sors, o narrador também deseja ver o mundo pela primeira vez. Por isso, dá inusitadas e bem-intencionadas explicações sobre muitos fatos. É em plena guerra, por exemplo, que diz: "As armas permitem-nos ser bons. Basta que não as usemos."

    Ainda nessa direção, muitas das frases de efeito do livro revelam instantes de lógica que não figurariam mal em páginas de autoajuda. Às vezes, topamos com afirmações como "para que a realidade se torne um sonho é preciso que um sonho se torne realidade."

    "O Pintor Debaixo do Lava-Loiças" diz algo sobre certo romance português mais preocupado em se localizar cultural e estrategicamente na Europa. Para isso, distancia-se, por exemplo, das feridas do colonialismo, escolhendo não só outras dores, mas também outros mercados.

    Por falar nessa tarefa de trocar uma ferida por outra, um dos poucos personagens portugueses do livro, em dado momento, garante: "Somos um povo fatalista", porque "para nós, o destino está escrito." E é ele mesmo quem, logo em seguida, completa: "Ah, se ao menos soubéssemos ler."

    LEONARDO GANDOLFI é professor de literatura portuguesa na Unifesp e autor de "Escala Richter (2015).

    EO PINTOR DBAIXO DO LAVA-LOIÇAS
    AUTOR Afonso Cruz
    EDITORA Peirópolis
    QUANTO R$ 39 (180 págs.)

    Edição impressa

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