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    Gravações de saraus dos anos 1950 revelam pérolas da música brasileira

    RODOLFO VIANA
    DE SÃO PAULO

    10/08/2016 02h00

    Divulgação
    A pianista Neusa França durante recitam em 1961. CRÃDITO: Divulgação
    A pianista Neusa França durante recital em 1961

    Era sagrado: toda sexta-feira, músicos se reuniam na casa da família França, em Ipanema, no Rio, para um sarau entre amigos. "Eles vinham às 8 da noite, tocavam madrugada adentro e iam embora às 9 da manhã, com café tomado", lembra Magda, filha da pianista, compositora e professora Neusa (1920-2016) e do advogado Oswaldo (1913-1988).

    Com sete anos quando os encontros começaram, em 1951, Magda viu passarem pela casa o ícone do choro Jacob do Bandolim, o autor da marchinha "O Teu Cabelo Não Nega", Lamartine Babo, um dos maiores do violão no Brasil, Baden Powell, o pioneiro da bossa nova Roberto Menescal e outros compositores que fizeram história.

    Mas a história pularia o capítulo dos saraus de Neusa França se, em 1957, Oswaldo não tivesse comprado um gravador para registrá-los em fitas. E se, em 2016, Alexandre Dias, pesquisador e diretor do IPB (Instituto Piano Brasileiro), não começasse a disponibilizar o material no YouTube.

    Nas últimas semanas, o IPB disponibilizou na internet 49 áudios extraídos das gravações —"nem 5% do acervo", diz Dias. "Um rolo pode conter mais de quatro horas; a fita cassete pode ter 60 ou 90 minutos. Por baixo, estimo 300 horas de gravações."

    Nas fitas há Lamartine Babo cantando a ainda desconhecida "Os Rouxinóis", que havia composto em 1957 para o Carnaval do ano seguinte; Claudio Santoro em canções de amor feitas em parceria com Vinicius de Moraes; Alfredo Medeiros interpretando um choro inédito feito com João Pernambuco; Baden Powell, com apenas 23, tocando "Insônia" anos antes de lançá-la em disco.

    Choro de Alfredo Medeiros e João Pernambuco

    Choro de Alfredo Medeiros e João Pernambuco

    "Papai e mamãe me ensinaram que existem dois tipos de música, apenas: a boa e a ruim", comenta Magda. Isso explica a mistura entre o clássico e o popular nas fitas, que vão desde o choro de Tia Amélia, pianista comparada a Chiquinha Gonzaga por Vinicius de Moraes, a Alexandre Bodak tocando "Prelúdio e Fuga nº 4", de Bach.

    O material —45 rolos e mais de 300 fitas cassetes— ficou com Dias depois que Magda se negou a recebê-lo. Ela lembra que, quando o pai morreu, em 1988, a mãe, que estava em Brasília, mandou todas as fitas para ela.

    "Eu disse: 'Mãe, não quero essas fitas. Não conheço aqui na cidade ninguém que tenha o apreço pela música que a gente tem, nem tenho confiança de botar isso na mão de alguém'." Devolveu o acervo e sugeriu que ela o repassasse a algum aluno que pudesse cuidar das fitas.

    Acabou com Dias, integrante de uma das últimas turmas de Neusa. Ele começou a digitalizar o acervo em 2006, "com ela [Neusa] em vida, para que ela e a família pudessem ouvir". Depois da morte da pianista, em 2016, propôs a Magda e seus dois irmãos que continuasse o trabalho. Eles aceitaram e "autorizaram generosamente que fosse tudo divulgado na internet".

    Além da extração das fitas, "o conteúdo passa por tratamento —sem deturpar os sons— e catalogação correta, o que pede grande pesquisa".

    A "grande pesquisa" tem, entre outros objetivos, identificar canções sem registros anteriores. Na fita que contém cinco gravações de Baden Powell, por exemplo, uma não pôde ser identificada. "Perguntei ao filho dele, Marcel [Powell], que conhece tudo do pai, e ele disse que tem a linguagem das obras de Baden, mas não conhece a música. Pode ser uma inédita."

    A previsão de Dias é que todos os áudios sejam extraídos até o próximo semestre.

    *

    TESOUROS DO ACERVO
    Três ilustres do sarau

    Baden Powell

    Baden Powell

    • O violonista toca "Valsa Op 8 nº 4", de Agustin Barrios. A gravação é inédita porque não consta em nenhum disco do Baden. Outra valsa executada não foi identificada e pode ser inédita do músico

    Lamartine Babo

    Lamartine Babo

    • Toca "Os Rouxinóis" em 1957, um ano antes de ser gravada. Em outro encontro, executa marchinhas de Eduardo Souto, compositor do fim do século 19

    Jacob do Bandolim

    Jacob do Bandolim

    • Dois anos antes de morrer, em 1967, num sarau que durou mais de quatro horas, Jacob e seu conjunto, Época de Ouro, tocaram músicas próprias, de Chico Buarque, de Pixinguinha e até de Chopin. Jacob recebeu de Oswaldo França uma cópia da gravação do encontro, mas, para o público, o registro permanecia inédito
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