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    General francês revela como método de tortura do país virou referência

    SYLVIA COLOMBO
    DE SÃO PAULO

    15/08/2016 02h00 - Atualizado às 07h55
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    "Eu vou atravessar uma porta, e diante dessa porta tem um espelho, vou olhar para esse espelho e não quero ver um canalha", assim falava o general francês Paul Aussaresses, em suas últimas entrevistas antes de morrer, em 2013, aos 95.

    Desde que deu as primeiras declarações ao jornal "Le Monde", em 2000, até pouco antes de sua morte, Aussaresses rompeu de forma incômoda um silêncio que dominava as Forças Armadas francesas sobre os métodos abusivos utilizados contra os integrantes da Frente de Libertação Nacional durante a guerra de independência da Argélia, entre 1954 e 1962. O país foi, desde 1830 até então, uma colônia francesa.

    Na França, que sempre se orgulhou de seu apreço pela defesa dos direitos humanos, as declarações de Aussaresses causaram intensa repercussão. Era a primeira vez que um militar de alta patente reconhecia que o Exército francês praticara torturas na Argélia.

    Mas, para ele, foi como acertar as contas consigo mesmo. "Creio que ele estava pensando no que aconteceria depois de sua morte e imaginava que, ao dizer a verdade, poderia se livrar de um julgamento negativo. Mas em nenhum momento ele se disse arrependido", conta a jornalista e pesquisadora Leneide Duarte-Plon em seu recém-lançado "A Tortura como Arma de Guerra".

    Baseado nas entrevistas que realizou com Aussaresses a partir de 2008, o livro detalha as técnicas usadas pelos franceses para obtenção de informações, assim como o modo como foram executados ou "desaparecidos" vários líderes da FLN.

    Aussaresses foi um combatente da Segunda Guerra Mundial e das guerras da Indochina (1946-1954) e da Argélia (1954-1962).

    Depois disso, foi enviado aos EUA para ensinar militares americanos e latino-americanos a atuar contra a insurgência em forma de guerrilha, ou, em suas palavras, contra os "terroristas".

    "Quando se estudam as ditaduras na América Latina, fala-se muito da ação dos EUA, e esse vínculo com a França é pouco estudado, mas ele foi muito forte. Passaram por esses cursos dos veteranos franceses nos fortes Bragg e Benning, nos EUA, muitos militares sul-americanos, como o argentino Jorge Videla (1925-2013) e o chileno Augusto Pinochet (1915-2006), que depois se transformariam em ditadores", diz a autora.

    Nesses encontros, segundo o relato de Aussaresses, os militares franceses ensinaram suas técnicas de interrogatório, que envolviam tortura.

    O vínculo de Aussaresses com a América Latina se fortaleceria entre 1973 e 1975, quando atuou como adido militar da França em Brasília. Nessa época, teria tido como amigo na capital brasileira o general João Baptista Figueiredo (1918-1999), enquanto este ainda era chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações) –depois assumiria o cargo de último presidente da ditadura militar brasileira (1964-1985).

    "Falou-me de Figueiredo como um amigo, alguém com quem compartilhava várias afinidades. Os dois eram enfaticamente anticomunistas, gostavam de cavalos e de mulheres", conta Duarte-Plon.

    Mas a relação entre os dois chefes militares não terminou muito bem. À jornalista Aussaresses relembra um caso que já havia relatado em seu livro "Je N'ai Pas Tout Dit", em que contava que o próprio Figueiredo havia mandado interrogar sob tortura uma mulher que tinha tido um breve "affaire" com o francês, mas que o então chefe do SNI acreditava ser uma espiã do "Leste". Aussaresses tentou fazer com que Figueiredo a libertasse, mas não conseguiu. Ao final, depois de muita insistência do francês, o brasileiro lhe teria dito: "Paul, aquela mulher era frágil fisicamente. Ela foi levada ao hospital e morreu."

    Com base nas descrições do general torturador, Duarte-Plon sugere que algumas mortes famosas da ditadura brasileira teriam sido inspiradas no modo de executar prisioneiros dos militares franceses na Argélia. O caso mais emblemático foi o do jornalista Vladimir Herzog, morto após sessões de tortura. Sob a alegação de que ele teria cometido suicídio, tentou-se camuflar a causa de sua morte com a simulação de uma cena de autoenforcamento, que se tornaria uma das imagens mais simbólicas da tortura no Brasil.

    Duarte-Plon conta que um dos chefes da FLN, Larbi Ben M'Hidi, teve a morte apresentada da mesma forma, como suicídio por enforcamento, mas que Aussaresses lhe confessara que, na verdade, ele tinha sido morto por tortura antes. "Nós o ajudamos", teria dito o ex-general.

    As polêmicas declarações de Aussaresses não foram dadas apenas em entrevistas a jornais e a emissoras de TV. O ex-general também lançou livros, após a primeira revelação, nos quais defendeu seus métodos, além de relatar como foi a execução de vários líderes da FLN.

    Acabou sendo levado à Justiça francesa, mas não foi condenado devido à lei de Anistia de 1968. Em sua defesa, dizia que "uma informação obtida a tempo poderia salvar dezenas de vidas humanas", caso o torturado fosse de fato um "terrorista". Também justificava as execuções dizendo que era preciso "não sobrecarregar o sistema Judiciário".

    'GENTLEMAN'

    A Tortura Como Arma de Guerra
    Leneide Duarte-Plon
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    Duarte-Plon diz ter se impressionado com a facilidade com que o general falava de detalhes muito técnicos das torturas e mortes sem parecer se incomodar. Também conta que se comportava como "um gentleman" e que tinha "gostos requintados". De fato, em entrevistas disponíveis no YouTube, pode-se ver Ausseresses confessando torturas, dizendo não ter remorsos, mas portando-se sempre de modo elegante e educado.

    As únicas punições que recebeu foi ter perdido o direito de usar a Legião de Honra como herói da Segunda Guerra, retirada em 2005 pelo então presidente Jacques Chirac, e ter de pagar uma multa de 7.500 euros por fazer "apologia de crimes de guerra".

    A TORTURA COMO ARMA DE GUERRA
    AUTORA Leneide Duarte-Plon
    EDITORA Civilização Brasileira
    QUANTO R$ 47,90 (294 págs.)

    Edição impressa

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