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    Adauto Novaes chega aos 30 anos de suas conferências renovando conceitos

    LUIZ FERNANDO VIANNA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    16/08/2016 02h00

    No Brasil de 1986, recém-saído do regime militar, boa parte da atividade intelectual estava direcionada para transformações sociais e caminhos políticos. Na contramão, Adauto Novaes lançou um ciclo de conferências chamado "Os Sentidos da Paixão".

    Depois vieram "O Olhar", "O Desejo" e outros temas imunes a dogmatismos e obviedades. Depois de 31 ciclos, o projeto chega aos 30 anos renovando preocupações e reflexões.

    A série "Entre Dois Mundos "" 30 Anos de Experiências do Pensamento" vai de 30 de agosto a 7 de novembro, apresentando 24 conferencistas em São Paulo e no Rio –um número menor vai a Belo Horizonte, Brasília e Salvador. As inscrições estão abertas.

    Zo Guimaraes/Folhapress
    RIO DE JANEIRO, RJ, BRASIL, 12-08- 2016, 13h00: O filósofo Adauto Novaes cujo ciclos de conferencia estao completando vinte anos. Humaita, Rio de Janeiro. (Foto: Zo Guimaraes/Folhapress, ILUSTRADA) ***EXCLUSIVO FOLHA****
    O filósofo Adauto Novaes no bairro do Humaitá, no Rio

    As palestras retomarão assuntos analisados ao longo das três décadas, mas à luz do conceito que Novaes desenvolve há dez anos: mutações.

    "Quando fiz 'A Crise do Estado-nação' [em 2003], ainda acreditava na ideia de crise. Mas percebi que o que estamos vivendo é uma revolução em todas as áreas", conta ele. "Mutações anteriores, como nas épocas do Renascimento e do Iluminismo, vieram acompanhadas de grandes projetos filosóficos e políticos. O problema de hoje é que a mutação se dá no vazio do pensamento e da política."

    Não se sabe de ninguém ter usado "mutações" nesse sentido antes do insight de Novaes. Nem mesmo na França, principal matriz de suas ideias. Ele estava em Paris em maio de 1968 estudando jornalismo e filosofia.

    Afirmando que "o sectarismo é a morte do pensamento", não se prende a cartilhas. Fala muito em "experiências", para indicar que as ideias têm sempre de ser testadas e revistas.

    Para o francês Francis Wolff, professor de filosofia que abrirá o ciclo deste ano, "a longevidade dos ciclos prova que Adauto sempre soube adaptar seus temas aos diferentes momentos e sempre alcançar novas gerações".

    "O grande mutante é ele, Adauto", afirma Wolff.

    Alguns conferencistas de agora eram crianças quando os ciclos começaram. São os casos de Guilherme Wisnik, colunista da Folha, Francisco Bosco e Pedro Duarte.

    As primeiras séries lotavam os auditórios e chegaram a ser exibidas em telões nas ruas.

    A Companhia das Letras tinha menos de um ano de vida quando lançou "Os Sentidos da Paixão", que já vendeu 40 mil exemplares. A editora produziu mais 15 livros da coleção, hoje a cargo do Sesc de São Paulo.

    "Os ciclos trouxeram abertura para o meio intelectual brasileiro com temas que a filosofia sempre abordou, mas de que as pessoas não se davam conta", diz Luiz Schwarcz, fundador da Companhia das Letras.

    Os ciclos atingem qualquer tipo de público. Parte dos intelectuais, ainda que pequena, viu com descrédito a iniciativa. As "mutações" também encontraram alguma resistência no meio acadêmico.

    "A Academia ainda não está ligada a essa ideia. Fica muito nas interpretações de textos. Como diz [o filósofo francês] Merleau-Ponty, 'é o diálogo surdo do pensamento com o próprio pensamento'. Não se vai às coisas", critica Novaes.

    Seu pensador de cabeceira é o francês Paul Valéry (1871-1945), poeta de interesses amplos e nada dogmático. No início do século 20, observando o papel que a ciência desempenhava na Primeira Guerra Mundial, ele escreveu: "Temo que o espírito esteja se transformando numa coisa supérflua".

    "Não é o espírito como algo metafísico, mas como inteligência e potência de transformação", diz Novaes.

    Ele se assusta com este tempo que começa a ser chamado de pós-humano: experimentos para as pessoas não dormirem, guerras parecendo videogames, sexo com robôs, nossas vidas monitoradas pelo Google e pelo Facebook.

    A velocidade dos acontecimentos atropela os intelectuais. Sem o tempo necessário para refletir, fazem intervenções desastradas ou se recolhem. A imagem usada por Novaes é, mais uma vez, de Valéry: "Os físicos nos ensinam que, em um forno incandescente, se nossos olhos pudessem subsistir, veriam nada".

    Para Wolff, o homem contemporâneo é o homo economicus, "prisioneiros dos mercados e das lógicas financeiras". Em consequência, lembra Novaes, a arte e o pensamento se tornam atividades condenáveis –coisa de vagabundo, como se lê nas redes sociais e na imprensa.

    "Por causa das disputas por mercado de trabalho, voltam os racismos, os nacionalismos. Não há concepções políticas claras que se oponham a isso", afirma Novaes.

    Com 78 anos que não aparenta, este mineiro de Credo –cidade onde nasceu Clara Nunes e que hoje se chama Caetanópolis– é muito afetuoso, mas sabe se impor. Quase todos os temas dos conferencistas são sugestões dele.

    "Só depois de te conhecer bem, ele deixa à vontade", conta a psicanalista Maria Rita Kehl, presente desde "Os Sentidos da Paixão". "Eu fui inventada como intelectual pelo Adauto."

    Não por acaso, a série dos 30 anos começará com uma palestra de Wolff sobre a amizade, sentimento que une os palestrantes. Dentre os deste ano há convidados franceses, além de brasileiros como José Miguel Wisnik, Renato Lessa e outros três colunistas da Folha: Marcelo Coelho, Jorge Coli e Vladimir Safatle.

    Pode ser uma despedida, caso Novaes não consiga condições para manter a série. Se acabar, ficam os livros e o testemunho, registrado no programa do ciclo deste ano, de Antonio Candido, um dos mais importantes intelectuais brasileiros e que participou de "Ética":

    "Não há dúvida de que a série dos volumes que recolhem os produtos de seus ciclos constitui um dos feitos mais importantes da atividade cultural brasileira do nosso tempo".

    *

    LEIA ENTREVISTA COM O FILÓSOFO FRANCIS WOLFF

    Participante frequente dos ciclos de Adauto Novaes, o professor de filosofia Francis Wolff é um francês que já viveu em São Paulo, dando aulas na USP. É um entusiasta do conceito de "mutações", que defende nesta entrevista, em contraponto à ideia de "crise". Ele abrirá o ciclo "Entre Dois Mundos - 30 Anos de Experiências do Pensamento" nos dias 30 de agosto (Rio), 31 (São Paulo) e 1º de setembro (Belo Horizonte) falando de amizade.

    Folha - Adauto Novaes costuma dizer que, quando iniciou a série Mutações, nem na França o tema estava em voga. Qual é a importância de aprofundar esse tema hoje e da aposta que ele fez nesse caminho?

    Francis Wolff - Para mim, o que é interessante na ideia de "mutação" é que ela se opõe a outras formas de se pensar as mudanças que vivemos. Ela se diferencia da ideia de "crise", que é um conceito conservador: uma crise é o estado patológico passageiro, como uma doença; ela supõe que, uma vez superada a crise, tudo voltará a ser são e normal. Ou seja, as grandes ideologias que mobilizaram o mundo (marxismo, fascismo) não retornaram a esse estado - ainda que, paradoxalmente, as desigualdades econômicas e sociais só cresceram num nível nacional ou internacional.

    As ideologias mobilizadoras assumiram, hoje, outra forma: suprapolíticas (meio ambiente, destruição da biosfera, sobrevivência da humanidade) ou infrapolíticas (questões de identidades: ser mulher, ser homossexual, ser deficiente etc...). Desta forma, a ideia de mutação se opõe também às ideias de "reforma" ou de "revolução", que pressupõem que os homens dominem parcialmente seu destino. Ou seja, cada vez mais temos a impressão de que a história nos escapa, e escapa até mesmo aos poderosos desse mundo. Uma mudança se opõe, finalmente, à ideia de "progresso". Ou seja, se é verdade que as descobertas científicas ou as inovações técnicas propiciam melhor compreensão da natureza e dos seres vivos e contribuem para a melhoria da saúde e das comunicações nos países desenvolvidos, elas não contribuem em nada, como já acreditamos, para o progresso social, moral ou educacional da humanidade. Uma época de mutação é efetivamente o que vivemos na política, nas ideias, nas ciências, nas técnicas: em todos os domínios não há mais referencias fixas.

    Qual a importância de um projeto como este durar 30 anos?

    Acho que os ciclos de Adauto são insubstituíveis. Na França não temos nada equivalente. Havia um homem de teatro, Jean Vilar, que tinha a mesma motivação: dar o melhor possível para o maior número de pessoas possível. Evitar tanto a vulgarização quanto o elitismo. A longevidade dos ciclos prova que Adauto sempre soube adaptar seus temas aos diferentes momentos e sempre alcançar novas gerações. É essa também a ideia de mutação. O grande "mutante" é ele, Adauto.

    O tema de sua conferência deste ano é a amizade. Como ela resiste num tempo pautado pela utilidade e pelo efêmero? E, ainda, num tempo tão marcado por ódios e intolerâncias?

    De todas as relações afetivas que podem nos unir a outros seres humanos (o amor, a família, a caridade, a fraternidade, a comunidade política, a solidariedade etc.), a amizade é a mais modesta e a mais estável, pois ela é a única que deve ser necessariamente recíproca. Ela é, portanto, a que traz a promessa de maior longevidade. Assim como os ciclos de Adauto. E como a relação que nos une a partir desses ciclos.

    *

    BALANÇO DE TRÊS DÉCADAS Destaques do ciclo 'Entre dois mundos - 30 anos de experiências do pensamento'

    FRANCIS WOLFF
    A amizade
    30/8, no Rio
    31/8, em São Paulo
    1º/9, em Belo Horizonte

    RENATO LESSA
    A invenção das crenças
    28/9, no Rio
    30/9, em São Paulo
    4/10, em Belo Horizonte
    14/10, em Salvador

    ANTONIO CICERO
    Artepensamento
    21/9, no Rio
    23/9, em São Paulo
    5/10, em Belo Horizonte

    JEAN-PIERRE DUPUY
    Congresso internacional do medo
    25/10, no Rio
    27/10, em São Paulo

    MARCELO COELHO
    O silêncio dos intelectuais
    11/10, no Rio
    14/10, em São Paulo
    26/10, em Salvador

    GUILHERME WISNIK
    O futuro não é mais o que era
    4/11, em São Paulo
    7/11, no Rio
    25/11, em Salvador

    MARILENA CHAUÍ
    Os sentidos da paixão
    14/9, em São Paulo
    18/9, no Rio

    MARIA RITA KEHL
    O desejo
    14/9, no Rio
    16/9, em São Paulo
    28/9, em Belo Horizonte
    7/10, em Salvador

    FRÉDÉRIC GROSO
    Esquecimento da política
    24/10, no Rio
    26/10, em São Paulo

    Mais informações no site do evento

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