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    depoimento

    Elke refutava o apelido Maravilha e afogava biógrafos com cerveja

    CHICO FELITTI
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    16/08/2016 10h59

    Elke Maravilha era uma artista muito engraçada. Não tinha metiê artístico. Havia quem pensasse em Elke como cantora. Para outros, era modelo. O grosso a conhecia como uma das primeiras celebridades televisivas do país.

    Não tinha um estilo. Podia ser punk, cuspindo em agentes da ditadura militar. Podia ser a jurada louca-mas-comportada do horário nobre. Podia ser a garota-propaganda que afirmava cobrar "quase nada" das marcas que a procuravam, e jurar fidelidade a quem assinasse o cheque.

    Não tinha pátria. Orgulhava-se de ser apátrida. Afirmava ter tido sua nacionalidade natal, russa, cassada e perdeu a naturalização brasileira na década de 1970 quando passou seis dias presa por no Dops (Departamento de Ordem Política e Social, braço de repressão da ditadura brasileira). Usou um passaporte da ONU para fazer suas andanças até descolar uma cidadania alemã, nas duas últimas décadas de vida.

    Era justamente pelas lacunas que sua vida valia um livro. Por mais que ela discordasse. Dez anos atrás procurei Elke para escrever sua biografia. Ela detestou o título provisório, "Mulher Maravilha" ("Criança, que coisa mais prepotente. Maravilha era a Simone de Beauvoir!"), mas aceitou me encontrar para repassar os principais acontecimentos até então.

    As entrevistas eram sempre antes das 10h em padarias da avenida Paulista, onde ela mantinha um apartamento num treme-treme entulhado de adereços. Mas a biografia nunca saiu. Por mais que Elke falasse mais do que a puta sifilítica, como ela mesma dizia, pedia que o gravador não fosse ligado até que terminássemos o café da manhã. Um café bem líquido, no caso: eu ia de cerveja e ela ia de vodca com gelo, rabo de galo ou algum aperitivo italiano amargo.

    Era batata que, antes do fundo do primeiro copo aparecer, passaria alguém na rua e gritaria "Oi, criança!". Poucos artistas conseguiram tomar para si um vocábulo como Elke e seu "criança".

    Sua peruca balançava com os trancos de riso quando contava da vez em que chamou a já centenária Dercy Gonçalves de criança. Ouviu de volta: "Quem vai querer um bebê feio pra caralho que nem eu, Elke?". Num outro encontro, um estudante de psicologia se juntou à mesa e fez uma análise de boteco do vocativo predileto da russa. "Você chama todo mundo de 'criança' porque está projetando sua própria auto-imagem. Elke, você não consegue se ver como uma adulta." A resposta foi uma cara de "eu, hein?", dois segundos de silêncio e uma gargalhada do fundo da alma.

    Da última vez que nos falamos, por telefone, Elke disse que estava meio para baixo, reclusa em seu apartamento em outro treme-treme, mas este no Leme. "São tempos esquisitos. Tem dia que prefiro ficar em casa com o Schopenhauer [Arthur, filósofo alemão] a sair na rua." Mas ainda assim, ela encarava o mundo.

    Em 2016, saiu de casa quando foi convidada a aparecer num comercial da Avon, mostrando a mulheres cis, mulheres transexuais, homens héteros, homens gays, homens transexuais, travestis e todas as variações de gênero como preparar sua pele para o dia a dia. Se teve algo que Elke soube fazer foi preparar-se para a própria vida, que levava sem pensar em arremedos. "Eu faço tudo errado: eu bebo, fumo. Ginástica, já tentei. Mas tenho preguiça. Ainda bem que o corpo ainda dá pro gasto, né, criança?", me disse em 2012, aos 67.

    Seus trabalhos foram, em sua maioria, efêmeros. Desfiles, participações em filmes, pontas em séries, representando ela mesma. A exceção fica para a bancada do show de talentos do Chacrinha, onde ela ficou 14 anos. Mas o que faz de Elke uma artista relevante não é a TV, e sim sua alma de arte. Ela acordava artista e ia dormir, lá pelas quatro da manhã, mais artista ainda. O legado de Maravilha é o conjunto da obra. Uma obra desempenhada na rua, em botecos, em boates, em passarelas, em estúdios de TV e na prisão. Uma obra que durou 71 anos e chega ao fim hoje.

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