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    Dependemos da arte francesa como um viciado das drogas, diz Sokurov

    BRUNO GHETTI
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE VENEZA

    18/08/2016 02h10

    Foi em um museu que Aleksandr Sokurov rodou aquele que talvez seja seu filme mais conhecido. "Arca Russa" (2002) era um só plano-sequência que invadia ala por ala do Hermitage, em São Petersburgo. O cineasta russo agora volta a um "templo" artístico –desta vez o Louvre– para filmar grande parte de seu novo longa, "Francofonia "" Louvre Sob Ocupação", que estreia nesta quinta (18).

    "Os dois filmes têm, sim, algo em comum: o mesmo diretor", diz Sokurov, pontuando a fala com uma risada sarcástica. A entrevista à Folha foi concedida no Festival de Veneza 2015. "Não vim [à mostra] por escolha própria, acho sem sentido. Mas devo apoio aos produtores, então aceito dar entrevistas. Sacrifico alguns dias da minha vida para promover meu filme", afirma.

    Mas Sokurov não é descortês nem econômico nas palavras. Aliás, fala muito, assim como faz em seu longa –em "Francofonia", ele narra trechos da história do Louvre, sobretudo durante a Ocupação alemã. Entre o docudrama e o filme-ensaio, o longa revisita o histórico do museu com foco no encontro entre um diretor do Louvre e um militar nazista, que se unem para evitar que a coleção seja danificada na Guerra.

    Mas isso é só base para um filme livre, alegórico e digressivo, que Sokurov recheia de observações pessoais sobre a arte e a civilização europeias.

    "É uma colagem de elementos heterogêneos. Precisava de uma solução plástica para abarcar tudo o que tinha a dizer. Fabulei, então, a trama em um mundo de arte, de fantasia. Como em 'Guernica', de Picasso, há vários elementos distintos se movendo ao redor de coisas estáticas", compara o russo. "Mas é preciso dizer: não é um documentário, um longa histórico ou um filme 'de opinião'. Quero evitar tais ilusões", completa, evitando dar um rótulo ao próprio trabalho.

    Mesmo sem pretender "opinar" sobre seu objeto de estudo, Sokurov deixa entrever grande paixão pela cultura francesa –o filme poderia se chamar "Francofilia". "Se você presta atenção ao impacto, à contribuição que essa cultura teve sobre as artes, verá o quanto o mundo precisa da França. Somos dependentes dessa cultura como um viciado depende de drogas", diz.

    "Vejo o termo 'Francofonia' como uma atitude particular diante da cultura francesa. Como se ela fosse uma irmã mais velha. No feminino, mesmo, porque você sabe: a relação com uma irmã é sempre diferente."

    Embora o Sokurov artista seja inquieto (e em "Francofonia" ele experimenta muito), o apreciador de artes aparenta mais conservador. Abomina uma produção mais moderna, sobretudo pós-pop art. "Muitos artistas parecem cegos para as cores. Deveriam estar pintando paredes! Estão perdendo a consciência de tanto sentir o cheiro da tinta", alfineta. "Mas é muito difícil ser pintor em um mundo que já teve [Hieronymus] Bosch, El Greco e tantos outros."

    A birra se estende a todo um cinema à la Quentin Tarantino, com aversão especial pelo próprio. "Não o levo a sério. A violência jorra em suas veias como fluidos corporais. Seus filmes denunciam prazer com a morte, a tortura. Não fosse assim, surgiriam de forma bem diferente na tela."

    A não ser pelas próprias ousadias estéticas e pelo apego à tecnologia em sua câmera, Sokurov parece desconfortável diante do mundo moderno (será por isso que se sente tão à vontade em museus?). Vê atônito a política externa das grandes nações ("ninguém se senta à mesma mesa!"), mas não se prende ao passado –até por achar que, de certo modo, ainda vivemos nele.

    Historiador por formação, teoriza: "A história fica em seu lugar: segue fixa no tempo. A Segunda Guerra ainda hoje recomeça. Se você prestar atenção, nenhum problema ali foi resolvido; todos persistem. Há décadas estamos no mesmo tempo presente, contínuo. Infelizmente."

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