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    Réplica

    'Além do comportamento constrangedor, crítico mente', diz diretor de 'Aquarius'

    KLEBER MENDONÇA FILHO
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    19/08/2016 02h09

    Por que defendo um ponto de vista ligado à participação na disputa pelo Oscar, esta "coisa de Hollywood"? Esta pergunta me tem sido feita ao longo das últimas semanas. A questão aqui não é Oscar, Goya ou Framboesa. A questão é defender um processo democrático.

    A escolha do filme para representar um país no Oscar deve ser estratégica para o cinema do país. As comissões montadas pela SAv (Secretaria do Audiovisual) para a seleção de um filme devem respeitar o processo democrático executado pelo MinC (Ministério da Cultura), órgão federal que defende, estimula e divulga a cultura brasileira.

    Antes de discutir o Oscar, o que ele é e o que representa, é importante defender a seriedade dos processos públicos de seleção para que a comissão, escolhida democraticamente por entidades ligadas ao audiovisual, possa fazer o trabalho corretamente.

    Como muitos já sabem, há duas semanas começou a circular a informação de que o jornalista paulista Marcos Petruccelli anunciara nas suas redes sociais o convite realizado pelo secretário do Audiovisual do governo interino, o pernambucano Alfredo Bertini, para compor a comissão que irá escolher o filme brasileiro para o Oscar. Tecnicamente, Petruccelli seria um nome adequado: é jornalista da área de entretenimento, atua na rádio CBN, e acredito que o mesmo padrão técnico aplica-se aos outros nomes da comissão –pessoas ligadas ao cinema e à cultura, livres para tomar suas decisões.

    No entanto, a questão que vem sendo levantada pela imprensa e redes sociais é que o jornalista em questão, por posicionamento político, vem atacando há três meses "Aquarius", filme escrito e dirigido por mim, e que o jornalista membro oficial da comissão já informou não ter visto.

    O posicionamento estridente do senhor Petruccelli em relação a esse filme parece ter como base a sua insatisfação pessoal com o protesto democrático e que terminou sendo divulgado em mídia mundial, realizado por dezenas de trabalhadores do audiovisual brasileiro e pela equipe de "Aquarius" no Festival de Cannes, onde o filme teve sua première em competição. Foi naquele momento do mês de maio que, vale lembrar, o MinC passou alguns dias extinto –decisão do governo interino que, depois, voltou atrás, ressuscitando a pasta.

    Se esse comportamento do jornalista já faz da sua participação nesta comissão algo constrangedor para a SAv, a questão torna-se ainda mais séria quando alguns desses ataques sugerem publicamente mentiras sobre a equipe de mais de 30 profissionais de "Aquarius" ter ido a Cannes "de férias", com suas estadias sido pagas pelo dinheiro público com orçamento ("no chute" do senhor Petrucelli) de "500 euros" por dia, por cabeça.

    Esse é um comportamento irresponsável num momento político onde fatos já têm sido tão ignorados e distorcidos na mídia.

    O jornalista, que deveria ter intimidade com a área na qual trabalha, não parece entender que um filme como "Aquarius", feito em Pernambuco, existe graças a uma união de profissionais do cinema que integram uma comunidade criativa relativamente pequena. Para completar, parte importante dessa mesma equipe também estava em Cannes para apresentar um segundo filme pernambucano (na prestigiosa Semana da Crítica), "O Delírio É a Redenção dos Aflitos", de Fellipe Fernandes, assistente de direção de "Aquarius". Caso notável de dois filmes brasileiros (e pernambucanos), em Cannes, em mostras de enorme prestígio.

    Em "Aquarius", nossa equipe trabalhou durante 15 semanas, sendo sete de preparação e oito de filmagem. Esses profissionais quiseram celebrar o longa e o curta, rodado logo após "Aquarius", sendo exibidos em Cannes. Com a seleção dos dois filmes, essas equipes com integrantes em comum fizeram esforços pessoais para ir ao festival, que é um encontro mundial de profissionais de cinema.

    Para que fique claro: com a exceção de mim e de Sonia Braga, que tivemos as despesas pagas pelos coprodutores franceses, e de alguns integrantes da nossa equipe de produção que tiveram três apoios publicados em "Diário Oficial" da Ancine (Agência Nacional de Cinema) –apoios previstos, reconhecidos, oficializados para profissionais brasileiros a trabalho em grandes festivais internacionais–, as mais de 30 pessoas da equipe (demais atores, técnicos, produtores) usaram seu próprio dinheiro, parcelando passagens aéreas e dividindo hospedagem.

    Não há nada de sinistro nisso. Sinistra é a má-fé de um personagem primitivo com acesso à internet, sem senso de informação.

    Com fatos puros e simples, combate-se o tipo de mentira destrutiva que um comunicador tem espalhado de forma tão irresponsável. E essa pessoa está numa comissão que deveria defender os interesses do país, para julgar um filme que ele mesmo vem caluniando da forma mais torpe imaginável.

    É esse tipo de postura sombria que, infelizmente, tem marcado as discussões políticas no nosso país, transformando qualquer artista brasileiro em criminoso instantâneo, sem provas de nada. País onde a defesa democrática de um ponto de vista é algo a ser descartada com ódio e sem diálogo.

    Este ano, a Academia de Hollywood tomou medidas para democratizar a opinião e o poder de voto dos seus membros, convidando cerca de 600 novos nomes de todo o mundo –uma dezena deles brasileiros, incluindo Anna Muylaert, Rodrigo Teixeira e Lula Carvalho–, mulheres e homens de múltiplas culturas. Ironicamente, é nesse momento que o processo de seleção de um filme brasileiro para essa mesma Academia já começa tão errado.

    Independente da escolha da comissão, "Aquarius" estará nos festivais de Toronto e Nova York em setembro, depois da estreia em Cannes com recepção espetacular da mídia internacional. Venceu o festival de Sydney e já conta com distribuição em mais de 60 países, em todas as plataformas (cinema, TV e "video on-demand", incluindo Netflix em quatro territórios, até na Ásia).

    É um filme sobre amar as pessoas, estar com elas. É também sobre a defesa de um ponto de vista, de uma opinião baseada em fatos e em experiência de vida por meio do respeito à história de cada um, e como isso se choca com o poder. Ou seja, "Aquarius" está em casa.

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