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    Crítica

    Sonia Braga está espetacular em filme construído meticulosamente

    INÁCIO ARAUJO
    CRÍTICO DA FOLHA

    30/08/2016 02h00

    Sim, "Aquarius" é um filme de impacto. Não um impacto imediato, mas algo longamente preparado e amadurecido. Algo talvez nem mesmo indispensável ao filme de Kleber Mendonça Filho, mas que está lá.

    Vamos ao trailer: ele nos leva a uma senhora, Clara (Sonia Braga) disposta a lutar até o fim contra os incorporadores que pretendem demolir o pequeno prédio onde tem seu apartamento e substituí-lo por um desses arranha-céus que povoam a orla recifense. Um filme, sugere o trailer, contra a especulação imobiliária.

    Trailer de 'Aquarius'

    Não é mentira, mas está longe de ser toda a verdade, pois ali tudo se constrói meticulosamente, ao longo de derivas que envolvem, para começar, a família.

    Já no início encontramos Clara, jovem, em 1980, um ano depois de superar um câncer, festejando o aniversário de uma tia. Ela tem os cabelos curtos. Nós a reencontramos na atualidade. Tem filhos e netos. Tem, sobretudo, longos cabelos. E a pergunta é quase inevitável: desde quando deixou de cortá-los? Desde o câncer? Ou desde a morte do marido, em 1997?

    Pergunta ingênua, mas que envolve motivos ligados à família a que o filme retorna com insistência: morte, continuidade, permanência. A família é um lugar de passagem de gerações, mas de permanência de um espírito.

    Abrir um álbum de fotos é abrir-se tanto ao passado como ao futuro. E Clara gosta de abri-los.

    Eles representam um, digamos, dever de memória. E, assim como vai ao cemitério depositar flores no túmulo do marido, Clara lutará pela continuidade do lugar onde viveu com o marido, onde criou os filhos. A casa é um lugar de afetos.

    A questão do cabelo de Clara não é nada secundária, como vimos. Ela designa o tempo, o câncer, a morte, a memória. E a memória, por sua vez, engendra o dever de resistência (e, portanto, dever de cidadania, essa palavra que já começa a cair de moda).

    Ao mesmo tempo, nos remete ao presente: à continuidade, ao prazer da convivência com os amigos, de um baile, da descoberta de alguém, da escuta de um disco, o terror de um pesadelo.

    Este é um filme de derivas, de inúmeros motivos que se sucedem em mosaico, como a compor o que se pode entender como o retrato total de sua protagonista.

    Existe, claro, um antagonista: a construtora. Ou a especulação imobiliária que representa. Ou o capitalismo selvagem que a especulação representa. Ou poder que a selvageria representa. Poder familiar (outro lado da família: nepotismo etc.). Não um poder econômico, não é esse o ponto do filme, mas um poder físico.

    Poder que se manifesta nos danos que pode causar à proprietária de um apartamento, mas, mais do que isso, danos civilizatórios. Danos aos valores da convivência e do caráter, substituídos pelo valor de mercado.

    É a isso que Clara se oporá com a coragem do pistoleiro que, num bangue-bangue, enfrenta o bando de poderosos apenas com sua arma. Pois é bem disso que se trata: de um faroeste. Daí seu surpreendente impacto.

    (Ah, sim, Sonia Braga está espetacular, num elenco muito bem dirigido).

    AQUARIUS
    DIREÇÃO Kleber Mendonça Filho
    ELENCO Sonia Braga, Maeve Jinkings, Irandhir Santos
    PRODUÇÃO Brasil, França, 2016, 18 anos
    QUANDO estreia na quinta (1º/9)

    Edição impressa

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