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    Em balanço de 100 dias, ministro da Cultura diz que errou na Cinemateca

    RODOLFO VIANA
    ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

    01/09/2016 22h24

    Alan Marques/ Folhapress
    BRASÍLIA, DF, BRASIL, 01.09.2016. O ministro da Cultura, Marcelo Calero, dá entrevista exclusiva sobre os seus100 dias na direção do MinC.(FOTO Alan Marques/ Folhapress) ILUSTRADA *** ESPECIAL FIM DE SEMANA ***
    O ministro da Cultura, Marcelo Calero, durante entrevista em seu gabinete, em Brasília

    Há 101 dias, o então presidente interino, Michel Temer, restituiu à Cultura o status de ministério depois de relegá-lo a uma secretaria do Ministério da Educação. Fora pressionado pela classe artística e por grupos que tomavam sedes da Funarte (Fundação Nacional das Artes) no país e iam às ruas, aos gritos, contra o processo de impeachment de Dilma Rousseff.

    Depois de algum tempo, o MinC voltou às manchetes com a Operação Boca Livre, deflagrada pela Polícia Federal para apurar desvios de R$ 180 milhões na Lei Rouanet. Com isso, a opinião pública passou a demonizar —ainda mais— o maior programa de incentivo cultural do país, e a ter como sinônimos os termos "artista" e "criminoso".

    Foi neste cenário de efervescência que Marcelo Calero, de 33 anos, substituiu o petista Juca Ferreira e assumiu o Ministério da Cultura.

    Ao completar cem dias de gestão, ele recebe a Folha em seu gabinete, em Brasília, na manhã de quinta (1º), para contar como pretende refundar a Funarte, fazer um balanço do período —incluindo "o erro concreto" que foi exonerar Olga Futemma da direção da Cinemateca e dizer que ser chamado de "golpista" é "inadmissível".

    *

    Folha - Como é sua avaliação desses cem dias?

    Marcelo Calero - A gente chegou no ministério num momento bastante complexo da vida política brasileira e, claro, também nas relações com a área cultural. Havia toda uma discussão sobre a institucionalidade da cultura dentro do governo [quando o Ministério da Cultura foi substituído por uma secretaria subordinada ao Ministério da Educação] e isso, por si só, já foi um desafio. Tem um artigo da Folha que fala, de maneira muito clara, sobre como pegamos o ministério: uma situação gravíssima do ponto de vista administrativo, com instituições em frangalhos.

    O primeiro desafio foi equacionar uma série de pagamentos em atraso, com uma dívida no montante de R$ 1 bilhão. Além disso, o ministério, institucionalmente, era muito fraco: havia uma quantidade enorme de pessoas estranhas aos quadros [que ocupavam cargos comissionados] assumindo posições de liderança e confiança. Isso, por si só, mostra uma fragilidade do ministério, uma vez que essas pessoas não têm ligação institucional, uma relação perene com o ministério; é uma coisa circunstancial. O organograma era uma sopa de letrinhas: áreas sombreadas que claramente tinham o objetivo de empregar gente, de trazer gente para dentro.

    Isso em um ministério com orçamento extremamente baixo, que não permitia nem sequer que nós sobrevivêssemos até o final do ano.

    Procuramos, desde logo, estabelecer contato, construir diálogos... Agora, a gente só dialoga com quem quer dialogar, né? Havia todo um questionamento por parte de alguns segmentos —questionamento legítimo, parte da vida democrática—, mas que, de certa forma, acabou não permitindo que algumas pontes fossem feitas —o que é normal! Veja, eu acho que, no Brasil, as pessoas às vezes tendem a dramatizar certas situações que fazem parte de um cotidiano democrático.

    A afirmação de que havia dívida na casa de R$ 1 bilhão é contestada pela gestão anterior, que diz que o valor era referente a contratos celebrados com Estados e municípios, mas que não foram executados e, portanto, não haveria dívida.

    Em algum momento houve erro da gestão anterior. Havia restos a pagar na ordem de R$ 1 bilhão. E restos a pagar, para qualquer pessoa entendida de orçamento... Bem, o nome já diz por si só. Apenas alguns exemplos [de restos a pagar]: os pontos de cultura de São Paulo, os alunos de audiovisual de Cuba —que tinham o curso ameaçado por falta de pagamento—, todos os artistas que tinham sido contemplados por editais da Funarte desde 2014, vários fornecedores do ministério que estavam há oito meses sem receber —inclusive empresas de segurança, limpeza, internet... Era uma situação de caos.

    Nesse período, quais foram seus acertos e erros até agora?

    Nos cem dias, os acertos foram essa reorganização administrativa, que envolve uma nova estrutura para o MinC [com mudanças no organograma da pasta] e o plano de valorização do servidor [com a extinção de cargos comissionados e abertura de processo de seleção para que servidores ocupem cargos mais graduados. São dois pilares.

    Há um testemunho que não sou eu quem deve dar, mas apenas relatando: em muitas entrevistas —porque a gente fez um batalhão de entrevistas [para escolher quais servidores ocupariam os cargos]—, os servidores se emocionavam e diziam que era a primeira vez que foi dado a eles a oportunidade de participarem de um processo seletivo. A gente colocou 50 vagas, e 43 já foram preenchidas.

    Também é acerto o diálogo com o presidente Temer, que entendeu a importância de nós termos nosso orçamento recomposto, além de um adicional. Isso permitiu que nós não apenas sobrevivêssemos até o fim do ano, mas pagássemos dívidas.

    Quanto aos erros... É tão difícil fazer autocrítica, né? Mas acho que... Bem, talvez isso não seja derivado da nossa ação, mas nossa própria chegada aqui, né, essa transição de secretaria [da Cultura do Rio de Janeiro] para ministério foi um período confuso. Houve erros da minha parte, claro...

    Alan Marques/ Folhapress
    BRASÍLIA, DF, BRASIL, 01.09.2016. O ministro da Cultura, Marcelo Calero, dá entrevista exclusiva sobre os seus100 dias na direção do MinC.(FOTO Alan Marques/ Folhapress) ILUSTRADA *** ESPECIAL FIM DE SEMANA ***
    O ministro da Cultura, Marcelo Calero, durante entrevista

    A exoneração de Olga Futemma [da direção da Cinemateca] e de sua equipe foi um deles?

    Este foi um erro concreto. Até porque ela estava no corte que nós fizemos, que seguiu uma lógica: pessoas que não têm e não tiveram ligação com o serviço público. A Olga era servidora aposentada e não poderia ser exonerada. Além disso, a gente entende que a Cinemateca está passando por um momento de transformação. Ela será gerida por uma OS (organização social) —daqui a duas ou três semanas lançamos o edital—, e a Olga, claro, é um elemento importante para estar neste momento de transição.

    Parcialmente a Cinemateca já é gerida por organização social —a parte de pessoal, especificamente.

    Sim, e o contrato vence em dezembro. Depois a gente quer algo mais abrangente.

    Abrangente como a gestão de todas as áreas da Cinemateca? Funcionará como funcionam equipamentos culturais na secretaria de Cultura de São Paulo?

    Eu prefiro usar como exemplo as OSs do Rio. [Risos]

    Cito a secretaria paulista porque o Marcelo Mattos [ex-secretário de Cultura do Estado de São Paulo] é um grande entusiasta da gestão por OS e agora está no Ibram (Instituto Brasileiro de Museus).

    Já me perguntaram se a vinda dele para o MinC significava que os museus seriam geridos por OSs. Aí eu pensei: "Sabe que eu não tinha pensado nisso?". [Risos]

    A vinda dele para o MinC significa museus geridos por OSs?

    Eu acho que é um modelo a ser estudado. Não tem nada certo. Veja, um dos erros da gestão anterior foi estabelecer premissas categóricas e, a partir delas, desenvolver o trabalho. Eu acho que deve ser o inverso: ir a campo e ver exemplos, e a partir disso construir seu modelo de gestão. A gente não deve partir de premissas de nenhuma ordem, mas, sim, ter os princípios constitucionais da administração pública. Um deles é eficiência, e esta é a resposta. Qual é a demanda da sociedade hoje? Que o Estado gaste eficientemente —e, portanto, faça entregas. Esta, sim, deve ser uma premissa categórica.

    Objetivamente, quanto à gestão de museus por OSs...

    Não descarto a ideia. Mas é preciso discutir, conversar —sobretudo com servidores do Ibram. Como eles receberiam essa ideia? Como poderiam ajudar a construir o modelo? São eles os primeiros a saberem das dificuldades de gestão que resultam no engessamento da administração pública.

    Qual é o plano para a promoção de artes e, especificamente, a Funarte?

    Nós temos a formulação de políticas públicas e uma série de autarquias que servem como braços operacionais dessas políticas. Um dos principais braços é a Funarte. É uma tecla que eu bato sempre. As artes foram deixadas de lado. Houve um sucateamento da Funarte, uma desvalorização absurda dos servidores —que começou inclusive com algo muito simbólico: você reformar o Palácio Capanema [no Rio] com os servidores dentro e "não tô nem aí se os servidores estão sofrendo problemas de saúde por conta da obra", e eles estavam [sofrendo]. Já me perguntaram: "Você acha que o CCBB e o Sesc haviam assumido o papel da Funarte?" Certamente, pois o nosso Sesc, o nosso CCBB —a Funarte— está largado às traças.

    Falo da Funarte porque, como eu disse, este precisa ser um ministério de entregas. Para isso precisamos os nossos braços operacionais funcionando. O Plano Nacional das Artes, por exemplo, vai ser revisto —e, agora, com técnicos da Funarte, que jamais participaram de sua construção. Há áreas que se sentem confortáveis dentro do PNA, como o circo, e há áreas que não. Isso precisa ser revisto, sim, mas capitaneado pelo presidente da Funarte, Humberto Braga.

    Outra coisa é o modelo institucional da Funarte. A Funarte será refundada na gestão de Michel Temer. Isso significa dotar a Funarte de um modelo que busque perenizar suas fontes de recurso e, portanto, torná-la uma instituição de referência, como são CCBB e Sesc.

    Como pretende refundar a Funarte em tempos de ajuste fiscal?

    Na cultura, tragicamente, as reduções que foram feitas na gestão Dilma foram tão impactantes que, no contexto do ajuste fiscal, hoje há legitimidade para pedir recomposição orçamentária. Há espaço, sim, e é na esteira disso que a gente vai conseguir, por exemplo, que em 2017 a Funarte tenha um orçamento mais polpudo, que reflita sua missão institucional de promoção das artes no país.

    Qual será o valor?

    Ainda não foi determinado, mas certamente será substancialmente maior que o valor legado pela gestão Dilma, que foi de R$ 430 milhões. [O ministro anota "430" num pedaço de papel e, logo abaixo, "750"] O orçamento pode vir concentrado no MinC, mas a minha ideia é que a gente possa compartilhá-lo com as diversas autarquias, além de suas rubricas próprias.

    Alan Marques/ Folhapress
    BRASÍLIA, DF, BRASIL, 01.09.2016. O ministro da Cultura, Marcelo Calero, dá entrevista exclusiva sobre os seus100 dias na direção do MinC.(FOTO Alan Marques/ Folhapress) ILUSTRADA *** ESPECIAL FIM DE SEMANA ***
    O ministro da Cultura, Marcelo Calero, durante entrevista

    Ministro, algo que eu pouco vejo o senhor comentar: o Vale-Cultura...

    O Vale-Cultura é, sim, uma política importante. A gente precisa redobrar os esforços com empresas para que, de fato, a adesão aumente. Hoje a gente tem mais ou menos 50 mil usuários —isso é um número cretino. Há alguns pensamentos... Por exemplo, o Vale-Cultura poder ser usado para pagar TV por assinatura —que é acesso à cultura. Queremos ter o Vale-Cultura revigorado, aumentar a base de usuários e o número de lugares onde ele possa ser usado.

    E quanto à Lei Rouanet? O mecanismo que tem ganhado cada vez mais destaque na mídia e na opinião pública —sobretudo depois da Operação Boca Livre. Qual tem sido o trabalho do ministério para conter abusos?

    Estamos conversando com diversos atores sobre financiamento de cultura e, a partir disso, vamos construir um posicionamento. Estamos também tentando entender de que maneira foi construído esse processo [o ProCultura] que está no Senado, se foi de maneira democrática o suficiente. Às vezes se falava aqui [na gestão anterior] em democracia, em diálogo, mas só se buscava um lado, se buscava dialogar com pessoas que estavam ali apenas para confirmar o pensamento existente. Isso não é democracia, isso não é diálogo: isso é claque. E claque nós dispensamos.

    O segundo aspecto: bandido, criminoso, quando quer executar suas atividades ilícitas, é igual água buscando seu curso: sempre vai arranjar uma maneira. Cabe ao governo e à sociedade sempre sofisticar os mecanismos para coibir essas ações. A experiência da Boca Livre mostrou que, sim, o ministério é capaz de acender a luz amarela quando precisa: a raiz de todo o ocorrido foi uma investigação levada à cabo neste ministério, que atua do ponto de vista administrativo; quando diz "crime", o envolvido é a polícia, é o Ministério da Justiça.

    De nossa parte, nós temos uma preocupação em ouvir os órgãos de controle no que diz respeito aos nossos atos de gestão, como o Tribunal de Contas da União e o Ministério da Transparência. Nós estamos construindo com os ministérios da Justiça e da Transparência uma portaria que vai permitir compartilhamento de informações, dando maior eficácia em encontrar esses bandidos que se valem da Lei Rouanet para fins ilícitos.

    Mas esses órgãos são externos. Como ser mais proativo, agir para coibir de dentro do MinC? Por exemplo, desde o ano passado se aventa uma nova instrução normativa [coleção de regras que acompanha a Lei Rouanet], e ela nunca sai do papel.

    Nós estamos trabalhando nela agora. A nova instrução normativa está na Sefic [Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura].

    A gente tem três interesses aqui, todos legítimos, que devem ser conciliados: o interesse do produtor, da classe artística, que quer usar recursos sem ser reprimido, sem ser tratado como bandido —ou seja, tem que se pedir, sim, notas e orçamentos, como noticiado pela Folha sobre o musical "Maysa"; o outro interesse é do servidor, que quer se sentir protegido ao fazer diligências, ao cumprir seus deveres; e outro interesse é da sociedade, que quer ver o dinheiro bem gasto. A gente tem que achar um calibre aqui para que os três interesses se sintam confortáveis.

    Por falar em ser reprimido, como o senhor encara ser chamado de "golpista"? Aconteceu isso novamente na exibição de "Aquarius", em Gramado...

    Nós vivemos um momento de paixões exacerbadas. E como gestores públicos que somos, nós, como Estado, temos a obrigação de buscar a pacificação do país. Essa é nossa responsabilidade. Acho que uma das razões pelas quais nós vivemos um momento tão delicado é o não entendimento dessa premissa, dessa responsabilidade enquanto Estado pela gestão anterior. O maniqueísmo, a busca de confronto não cabe ao poder público.

    Há grupos dentro do setor cultural que se posicionam de maneira contrária ao governo do presidente Michel Temer. A gente tem que encarar isso de maneira madura, saber nosso papel como Estado, entendendo que isso faz parte do cotidiano democrático.

    O que acredito ser inadmissível são manifestações desrespeitosas. Isso faz parte da boa educação, da civilidade. Me chamar de golpista eu acho inadmissível. Porque você coloca sob dúvida um processo absolutamente legítimo comandado pelo Supremo Tribunal Federal. Ponto.

    Acho que nós temos uma missão que ultrapassa essas questões de ordem político-ideológica.

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