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    'Estou quase cego, esperando pelo blecaute final', diz Ferlinghetti

    RAPHAEL SASSAKI
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    03/09/2016 02h13

    Lawrence Ferlinghetti já foi um garoto tipicamente americano que virou escoteiro nos subúrbios. Mais tarde, desembarcou na praia da Normandia, com as tropas aliadas, na Segunda Guerra, e viajou entre vagões de carga com homens desconhecidos. Viu as xícaras repletas de cinzas do cogumelo atômico em Nagasaki, depois da bomba.

    Nos anos 1950, Ferlinghetti virou um dos escritores mais populares dos EUA ao lançar os poemas de "Um Parque de Diversões da Cabeça" (L&PM), no qual se definia como um "pianista de um cassino abandonado numa colina à beira mar".

    Brian Flaherty/The New York Times
    -- PHOTO MOVED IN ADVANCE AND NOT FOR USE - ONLINE OR IN PRINT - BEFORE JUNE 26, 2016. -- Lawrence Ferlinghetti stands between two recent paintings, â€ÃúVoyager #1â€Ãù and â€ÃúVoyager #2â€Ãù at his studio in San Francisco, March 2, 2016. At 97, Ferlinghetti is finally finishing a book about his life, to the great delight of his longtime agent, Sterling Lord. (Brian Flaherty/The New York Times) ORG XMIT: XNYT151 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    O autor americano, em seu estúdio, com quadros que pintou neste ano

    Também é conhecido por ter fundado a City Lights Books, livraria e editora que foi o epicentro da poesia beatnik. Foi ele o editor que publicou "Uivo" (Companhia das Letras), poema mítico de Allen Ginsberg. O livro seria depois censurado nos EUA, em meio a uma polêmica que deixaria ambos famosos.

    Aos 97 anos, Ferlinghetti vive em São Francisco e guarda seu derradeiro livro em uma caixa com 78 cadernos pequenos, que chama de "romance-memória", no qual conta sua trajetória da infância à velhice.

    O autor conversou com a Folha por telefone e deu detalhes sobre a nova obra, intitulada "One Stream of Consciousness" (um fluxo de consciência), que ainda não tem previsão de lançamento.

    *

    Folha - O sr. está escrevendo um livro parcialmente autobiográfico. Pode falar mais sobre ele?
    Ferlinghetti - Não é uma autobiografia, eu o chamo de romance-memória, e o título é "One Stream of Consciousness". A parte autobiográfica vai desde quando ainda sou um menino e segue até tudo o que eu tenho a dizer como adulto. No fim das contas, sou uma criança que ficou velha e está quase cega. Esse é o fim. Não é ficção, é vida real. Não gosto do termo ficção, você diria que "Cem Anos de Solidão" é uma obra de ficção?

    Naquele tempo o sr. era um anarquista.
    O anarquismo sempre foi um ideal, não uma ideologia. Ele nasceu no século XIX, e nessa época o mundo não tinha um terço das pessoas que tem hoje. O anarquismo era possível quando não havia populações tão grandes.

    Mas hoje, a não ser que você tenha alguma forma de governo, as pessoas vão acabar matando umas às outras. De qualquer forma, é isso que começa a acontecer.

    O sr. parece ter poucas esperanças em soluções políticas coletivas.
    O mundo nunca esteve tão ruim. Encontrei Günter Grass após ele ter passado um ano nas favelas de Calcutá. Sua visão do futuro da humanidade era que, em nosso século, países como são conhecidos hoje não vão mais existir; as fronteiras serão mais porosas; e o mundo vai ser tomado por hordas étnicas em busca de comida e abrigo.

    Acho que já estamos vendo o começo disso. É claro que do ponto de vista anarquista, pequenas sociedades ou comunas fora do estado talvez venham a se realizar. E sem grandes nações não haveria guerras mundiais.

    Como começou a escrever poesia? Como foi escrever "Um Parque de Diversões da Cabeça"?
    Não me dei conta que eu era poeta, me dei conta de que tinha algo a dizer. Eu havia acabado de voltar de Paris, onde vivi por 4 anos, fazendo um doutorado. E vim direto para São Francisco, onde nunca havia estado.

    O que escrevi nos meus primeiros anos aqui foi influenciado por autores franceses. Mas o que acontecia em São Francisco imediatamente passou a afetar minha escrita.

    Os anos 1950 foram um época revolucionária. Havia mais oportunidades em São Francisco do que em Nova York, que já estava vendida, onde tudo já havia sido tomado. Em São Francisco você podia fazer qualquer coisa, ainda havia uma última fronteira na América, e era um lugar excitante de se estar.

    O contato com a filosofia oriental é muito marcante na sua obra.
    Não sou budista, nem faço meditação. Na verdade, no inverno eu sou budista, e no verão eu sou nudista.

    Para que serve a poesia, hoje em dia?
    Por definição o poeta é um inimigo do Estado. Sua função é contar a verdade que é distorcida pelos políticos.

    Como você vê a possibilidade de Trump ser presidente?
    Ele é muito perigoso. Ele me lembra Mussolini. Todos acharam que Trump era apenas uma piada, mas seria um desastre ele ser presidente dos EUA, seria um regime ditatorial. Se ele escrevesse sua própria autobiografia deveria se chamar "Mein Trumpf" [trocadilho com "Mein Kampf", autobiografia de Hitler]. Ontem ele fez um discurso em que, pela primeira vez, levanta seu braço direito com o punho fechado. Sempre foi o gesto de luta usado pelos oprimidos. É um sinal muito ruim.

    Qual é sua opinião sobre a administração Obama?
    Obama foi uma grande decepção. Mas, desde o princípio, eu dizia: você não pode esperar que uma pessoa faça algo revolucionário quando ela nunca foi uma revolucionária.

    Obama gostaria de ser como Abraham Lincoln, esse era seu modelo. O grande conciliador. Mas Obama acabou se ornando o grande contemporizador.

    Mas ele fez muitas coisas boas, como a retomada das relações com Cuba. Acho que ele irá para a Suprema Corte e que seria um grande juiz.

    Como era sua relação com o poeta William Burroughs?
    Nós publicamos muito pouco de Burroughs, nunca fui um entusiasta de seus primeiros escritos. Tive a chance de publicar "Almoço Nu", mas não gostei do livro. Achei que expressava uma mentalidade de doidão, cheia de morte e ódio.

    Burroughs era "el hombre invisible", veio à livraria mais de uma vez para fazer leituras, mas você via que ele não estava lá. Era como tantos outros velhos doidões, que estão presentes fisicamente, mas não presentes de fato. Eu nunca entrei na mesma onda que ele.

    Um Parque de Diversões da Cabeça
    Lawrence Ferlinghetti
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    Como foi ler "Uivo", o grande poema de Allen Ginsberg, pela primeira vez?
    Quando você lê um poema como esse, a única coisa que pode pensar é que nunca viu a realidade dessa maneira antes. E esse é o teste real, se você está lendo uma grande obra, a impressão é de nunca ter visto um mundo como esse antes. Era uma visão totalmente nova que nunca havia sido expressada na poesia americana.

    Como se sente com 97 anos?
    Como eu mostro na meu novo livro, eu estou quase cego, esperando pelo blecaute final. Não é divertido.

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