"Hell, yeah, we, fuck, die." Juntas, essas palavras em inglês –inferno, sim, nós, fode, morre– formam uma frase quase perfeita, com sujeito e predicado. No segundo andar do pavilhão da Bienal de São Paulo, escritas com letras de acrílico e concreto, elas formam um outdoor às avessas, um verso que resume –gritando– a paisagem sonora atual.
Hito Steyerl, artista alemã que está entre os 81 nomes escalados para a mostra que começa agora, estudou as letras de músicas no topo das paradas na última década e concluiu que esses termos são os que mais se repetem, indicando uma propensão à violência e ao sexo, ou às duas coisas ao mesmo tempo, seguidas de morte.
"Há muitas camadas, mas a violência está em todos os lugares", diz a artista. "Já não pisamos mais em terra firme. Estamos nadando num dilúvio."
Tempestades, reais ou metafóricas, também orientam grande parte das obras da mostra, mas a forma de narrar o caos passa em grande parte por um filtro feminino –a 32ª edição do evento paulistano tem mais de metade de seu elenco formado por mulheres, o maior número de todos os tempos. E elas têm os olhos vidrados num mundo em colapso, alvo de catástrofes insuspeitadas que ganham vulto no horizonte.
"De um segundo para o outro, tudo vira um inferno", diz Jochen Volz, o alemão à frente da exposição, diante de um vídeo da americana Rachel Rose, no térreo do pavilhão. Na tela, um dia de sol na praia se transforma de repente numa chuva de granizo, e banhistas correm em busca de abrigo.
Ela intercala essas imagens a outras do arquiteto Philip Johnson explicando como sua famosa casa toda de vidro foi construída nos Estados Unidos seguindo as dimensões do corpo humano. O prédio transparente do filme ecoa o pavilhão de Oscar Niemeyer no Ibirapuera, numa quase fusão entre a obra e seu ambiente.
Mas o contrário é mais recorrente. Nesta Bienal, arquiteturas feitas de terra, com formas orgânicas, entram em choque com a limpeza austera do modernismo brasileiro.
Essa dicotomia toma dimensões monumentais no vão central do pavilhão, onde Lais Myrrha ergueu duas torres imensas, uma de tijolos e vergalhões de ferro e outra de terra batida e palha, contrastando métodos de construção dos índios e caboclos com a arquitetura urbana.
Outros artistas também tocam nesse ponto, espalhando os marrons e ocres do barro e da lama pelo piso de concreto de Niemeyer. Logo na entrada, Bené Fonteles construiu uma oca que abraça as colunas do pavilhão, Frans Krajcberg criou uma floresta de esculturas de galhos retorcidos e a britânica Ruth Ewan montou um calendário usando plantas e verduras.
Mais adiante, a portuguesa Carla Filipe fez uma horta, a peruana Rita Ponce de León criou um labirinto de barro, os lituanos Nomeda & Gediminas Urbonas cultivam cogumelos em estufas, a finlandesa Pia Lindman construiu uma cabana de barro e a australiana Susan Jacobs projeta imagens em placas de vidro espetadas na terra.
Vistas uma atrás da outra, essas obras pisam e repisam um mantra ecológico, dando a sensação de caminhar entre jardins de plantas estranhas.
"Esse formato de ameba que escolhi é como um micróbio invadindo esse espaço modernista", diz Lindman, descalça, os cabelos presos em maria-chiquinha, diante de sua oca. "É um intruso que toma sua energia das plantas."
BORBOLETAS E TIROS
Menos hippie, o camaronês Em'kal Eyongakpa também partiu do mundo vegetal para criar uma instalação poderosa. Sons de uma floresta africana inundam uma sala escura, de um banho de chuva a saraivadas de balas e o ronco feroz de serras elétricas.
"Você sente que nesse ecossistema os humanos são estrangeiros", diz Eyongakpa. "É a beleza e a violência, algo entre a catástrofe e o equilíbrio, borboletas e tiros."
Jonathas de Andrade também se equilibra no fio da navalha entre a ternura e a agonia. Em seu mais novo filme, que estreia na Bienal, ele mostra um estranho –e fictício– ritual de pescadores que abraçam os peixes logo depois que são fisgados. Seus enquadramentos fechados contrastam a pele queimada de sol desses homens com as escamas lustrosas e os últimos suspiros dos bichos, que morrem no afago.
"Isso toca num estereótipo romântico", diz Andrade. "Mas a imagem é muito forte."
Imagens fortes, aliás, não faltam ali. À distância, as lápides enfileiradas no chão pelo neozelandês Luke Willis Thompson lembram uma escultura minimalista, mas, na verdade, vieram de túmulos reais de um cemitério de escravos de uma ilha do Pacífico.
Na maré alta, as sepulturas se desfizeram, deixando como pegada só os fragmentos de pedra soltos e agora levados ao pavilhão. "Queria construir um cemitério móvel, à deriva", diz o artista. "É ao mesmo tempo algo belo e traumático."
Não muito longe das lápides, Vivian Caccuri construiu o que chama de "altar para o grave". São caixas de som que tocam só as frequências graves de composições, chacoalhando o pavilhão de hora em hora, como sinos de igreja.
"Treme tudo", diz Caccuri, que se inspirou na música pop de Gana para criar a obra –suas caixas de som, aliás, vão tocar composições de DJs do país, que adaptaram canções para seu sistema estrondoso.
Da histeria sonora à visual, Bárbara Wagner investiga os códigos por trás da construção da música brega do Recife num novo filme. Enquanto tempestades varrem o mundo, ela mergulha numa reflexão sobre a lógica de impacto e espanto que serve de pilar dessa nova identidade regional, lembrando que a cultura, a exemplo do que faz Hito Steyerl, é também uma terra em transe.
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