Há quase 50 anos, quando Lina Bo Bardi (1914-1992) realizou "A Mão do Povo Brasileiro", primeira mostra temporária do Masp (Museu de Arte de São Paulo), em 1969, a narrativa oficial da arte brasileira precisou ser repensada.
No mesmo edifício que apresentava obras-primas de artistas como Van Gogh, Picasso ou Cézanne, o museu exibia cerca de mil objetos criados em um contexto popular, de carrancas a ex-votos, de mobiliário a brinquedos.
Desde então, muitas foram as mostras e instituições que buscaram incluir essa produção no sistema de arte, caso da 16ª Bienal de São Paulo, em 1981, que apresentou obras de Antônio Poteiro e G.T.O., entre outros, até o Museu Afro Brasil.
Danilo Verpa/Folhapress | ||
Carrancas expostas na mostra 'A Mão do Povo do Brasileiro', reencenação em cartaz no Masp desde a semana passada |
Concebido por Emanoel Araujo e inaugurado em 2004, o Afro Brasil destaca-se por dar seguimento a essa narrativa inclusiva na história da arte nacional.
Lá, ex-votos, imagens de santos e objetos cotidianos convivem com arte acadêmica, moderna ou contemporânea harmoniosamente.
Esses dois exemplos não são únicos –muitas são as mostras que buscam e buscaram rever categorias que já não são mais suficientes para se pensar a arte, como erudito e popular.
O Panorama da Arte Brasileira, organizado por Aracy Amaral no ano passado, radicalizou essa questão de forma exemplar, exibindo manifestações tridimensionais de mais de 3.000 anos atrás em um diálogo com a arte contemporânea.
Por isso, é um tanto descabida a reencenação de "A Mão do Povo Brasileiro", em cartaz no Masp, sem uma leitura crítica da mostra original, sem a preocupação de incluir "a mão do povo brasileiro" desses últimos 50 anos, sem o mínimo de reflexão sobre afinal o que faz "a mão do povo brasileiro".
Com isso, os curadores da mostra –Adriano Pedrosa, Julieta González e Tomás Toledo– apenas seguem no processo de fetichização de Lina Bo Bardi, escorando-se nas ideias que nortearam os primeiros anos do museu, mas sem de fato pensar qual o possível projeto de uma instituição de arte hoje.
Afinal, quem entrar no museu nestes dias vai encontrar a primeira disposição do acervo em sua sede na Paulista, a primeira exposição temporária e uma retrospectiva de um pintor modernista, "Portinaria Popular", que reforça um caráter ruralista e religioso do povo brasileiro, que mesmo há 50 anos já estava passando por grande transformação.
Três obras de artistas contemporâneos, Lygia Pape, Jonathas de Andrade e Thiago Honório são acessórios ao revisionismo do Masp.
Nesse contexto, "A Mão do Povo Brasileiro" é a mostra que mais perde. Afinal, se há 50 anos foi um gesto arrojado incluir objetos populares em um museu, hoje mantê-los juntos em uma sala separada é manter no gueto a produção popular.
Como encenação, tão pouco, a mostra segura-se como algo ousado na atualidade. Usar madeira natural como suporte e reunir utensílios com a mesma função em excesso são recursos banalizados, já usados em muitas mostras e instituições –o Museu da Imigração é um bom exemplo dessa estratégia.
Se há 50 anos o Masp de Lina Bo e Pietro Maria Bardi destacava-se por atualizar as ações e possibilidades de uma instituição museológica, hoje ele apenas olha para o passado incapaz de pensar o presente.