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    Bienal de Berlim funde arte com produto e divide público e crítica

    JOÃO PAULO CUENCA
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM BERLIM

    14/09/2016 02h05

    Linguagem publicitária em vídeos distópicos de computação gráfica. Stands exibindo o portfólio de empresas-nações. Workshops de ioga-performance. Manuscritos íntimos respondendo a spams de uma caixa postal. Expostos como relíquias, objetos banais que ajudam a compor o índice da "alegria" alemã. Aparelhos de ginástica disponíveis para uso –e workouts guiados aos sábados.

    Essas são algumas das investigações sobre os paradoxos contemporâneos presentes na 9ª Bienal de Arte de Berlim, "The Present in Drag" (o presente travestido).

    A exibição chega à última semana sem alcançar consenso de público e crítica, divididos entre os que a veem como embuste ou a mostra mais importante da década.

    Timo Ohler/Divulgação
    Manequins-malas da série 'Transit Mode - Abenteuer' (2014-16), da artista sueca radicada em Berlim Anna Uddenberg BIENAL DE BERLIM ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    Manequins-malas da série 'Transit Mode - Abenteuer' (2014-16), da artista Anna Uddenberg

    A polêmica começa bem antes da abertura dos seus cinco espaços expositivos em junho.

    Se outras edições tiveram como curadores pesos-pesados da arte contemporânea como Klaus Biesenbach, Hans Ulrich Obrist e Adam Szym- czyk, além de artistas com alta voltagem política como Maurizio Cattelan e os russos do Voina, desta vez o Instituto KW de Arte Contemporânea escolheu para a curadoria um coletivo fashionista de Nova York que centraliza sua produção numa revista de "arte e lifestyle", o DIS.

    Os quatro jovens da "DIS Magazine" nunca tinham feito nada parecido e, para muitos, deveriam ter continuado sem fazer. "Um vasto espetáculo de irrelevância", "perfeita para o Instagram" –até "BienalLOL" a imprensa especializada cravou.

    Talvez os curadores tenham escolhido o trabalho da alemã Yngve Holen prevendo tais reações. Sobre uma parede da Feuerle Collection (bunker de telecomunicação nazista abandonado), ela pôs uma série de janelas de Boeing 787 pintadas como olhos turcos, daqueles para afastar mau-olhado.

    Em versão lente de contato azul, os "hater blockers" estão à venda nas lojas dos museus. Parece piada, é piada –mas pode ser algo mais. Como o talismã virou um suvenir genérico encontrado em lojas para turistas em todo o mundo, há um comentário pueril sobre a mobilidade global, nossas tentativas de ultrapassar geografia e tempo.

    E não só ali. No mezanino da Academia de Artes de Berlim há algo que lembra um empreendimento imobiliário.

    Em frente ao sofá, a TV explica as vantagens de "New Eelam", um sistema de moradia líquida que garante teto em bairros hipsters de todo o mundo a partir de um pagamento mensal.

    Em Nova York, Londres ou Berlim, tanto faz: é a mesma coisa. Há panfletos com explicações e pôsteres pendurados fazendo propaganda do produto. Da mesma forma que "Mint", uma casa de sucos naturais com móveis ecológicos no primeiro andar, ele não existe.

    Ou existem os dois apenas como obra de arte no contexto da Bienal: "New Eelam", do britânico Christopher Kulendran Thomas, e "Mint", da mexicana Débora Delmar (ou Débora Delmar Corp.).

    MOBILIDADE

    Quando cada casa (Airbnb), carro (Uber), corpo (Tinder) e identidade (Facebook) são produtos em potencial, o mercado nos exige mobilidade.

    Não por acaso, no mesmo prédio, vemos os corpos atléticos dos manequins de Anna Uddenberg vestidos com roupas fitness –e muitos convertidos em criaturas grotescas, cuja metade inferior do corpo é uma mala de rodinhas, as costas arqueadas transformando-se em mochilas.

    Isoladamente, os melhores trabalhos são os que destoam do tom vulgar e direto da Bienal, como "The Tower" e "ExtraSpaceCraft", instalações em vídeo da alemã Hito Steyerl sobre o plano iraquiano de construir uma torre de babel, o uso de drones e uma empresa ucraniana especializada na construção de espaços virtuais.

    Os espelhamentos presentes nas interseções entre arte, propaganda e produto já foram propostos com mais elegância expositiva e conceitual, mas o que a curadoria propõe é tão pouco sutil quanto os tempos que vivemos.

    O que a princípio parece escapismo e virtualidade acaba nos trazendo ao centro do agora.

    Para alguns pode ser desagradável como uma terapia de choque, mas sem dúvida pertinente como reflexão e tentativa de enunciado sobre arte pós-contemporânea.

    JOÃO PAULO CUENCA viajou a convite dos escritórios de turismo de Berlim e de Viena.

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