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    Superloja de CDs, Amoeba Music vive crônica de uma morte anunciada

    ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

    18/09/2016 02h19

    Lá está ela. E de repente não está mais.

    Tão linda, sempre jovem, moderna, vestida de branco, cheia de curvas e surpresas, à sua espera numa esquina da megacidade ensolarada. Parecia que ficaria lá para sempre, à disposição, melhor a cada visita (de preferência matinal, para passar o dia ali), um universo infinito a ser descoberto.

    Gary Minnaert/Wikipedia
    21 January 2007 Amoeba Music on Sunset Boulevard in Hollywood Foto: Gary Minnaert / wikipedia ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    A Amoeba de Los Angeles, a maior das três lojas da rede

    Mas você piscou o olho, ela se foi. O que ela lhe trazia deixa de ser concreto. Era um conjunto, agora são fragmentos. Tudo passa a existir em alguma nuvem que ninguém sabe onde fica. Você via, tocava. Agora só ouve e se lembra.

    Estive lá tantas vezes, sumi por uns tempos, acompanhava de longe, dava de barato que ainda seriam muitos outros encontros. Perdi, adeus.

    O que existia ali, daquele jeito, naquela quantidade, e com tanta qualidade, você não encontrava em nenhum outro lugar.

    Você não era o único, mas sentia como se ela fosse só sua. Generosa, ela abraçava os solitários, os outsiders. Os de gostos ultraespecíficos, fosse pelos sons do mainstream ou pelas obscuridades mais exóticas.

    Todas as gravações possíveis e imagináveis do Queen. Pós-punk tailandês, o cinema indie de Hong Kong, vinis esquecidos de soul music. Trilhas de balé, música erudita de vanguarda (mas também Tchaikóvski, por que não?), as últimas novidades da eletrônica experimental, "Sobrevivendo no Inferno", dos Racionais, coletâneas de Elis Regina.

    Dúvidas sobre rock do sudeste da Ásia? Sobre psicodelia turca, ie-ie-iê nigeriano? Alguém aparecia para ajudar. Tudo mundo que andava por lá tinha banda, tinha opinião. A turma mais legal de Hollywood. Para onde vão agora?

    ANÚNCIO

    Foi anunciado há dias que a estupenda Amoeba de Hollywood, em Los Angeles, a maior e mais famosa loja de música do mundo, está com os dias contados.

    O prédio foi vendido, o contrato de aluguel tem só mais "alguns anos". A galera de um serviço local de notícias encontrou, no site de uma firma de arquitetura, uma simulação em que o espaço da Amoeba (Sunset Boulevard, esquina com Cahuenga) é ocupado por uma torre envidraçada de luxo.

    A Amoeba já surgiu independente e grande. Abriu a primeira loja um pouco mais ao norte da Califórnia, em Berkeley, meca hippie, em 1990. Depois inaugurou um novo espaço, gigante, na vizinha São Francisco, na Haight Street de girassóis nos cabelos, poesia beat, Grateful Dead e lava lamps.

    A de Hollywood, terceira e ainda maior filial, veio em 2001. Entrar ali ainda é uma experiência única para quem tem um mínimo de interesse por música e cinema.

    Mas a Amoeba representa um mundo que não existe mais. CDs, que eram seu forte, estão praticamente extintos. O vinil vive um boom –mas como fetiche, nicho, não como um caminho viável para o futuro da indústria.

    E as raridades que estocava em DVD e Blu-ray hoje são encontráveis com um simples clique na Amazon.

    A Amoeba falava para uma geração que valorizava a posse. À de hoje, basta o acesso. Porque os lançamentos estão imediatamente disponíveis, em tempo real e no mundo todo, em plataformas de streaming como o Spotify.

    Pulverizados, não necessariamente na forma de um álbum. E porque filmes, em casa, se veem pelo Netflix. Quem precisa de mídia física?

    TIOZINHOS

    Bem, bastante gente, tiozinhos na maioria, a julgar pelo movimento sempre grande na Amoeba angelena. A eternamente longa fila dos caixas, o fluxo incessante pelos corredores que parecem não ter fim. A plateia lotada para pocket shows ali dentro mesmo: de Paul McCartney a Lana Del Rey, de Ty Segall e Peter Murphy a TV on the Radio.

    Não há como fugir: nossa ligação com a Amoeba, e com tudo o que ela representa, vive os últimos instantes. As luzes começam a se apagar. O vínculo com aquele mundo concreto –principalmente de sons, mas tátil, visual– se dissolve.

    Caminhe até aquela esquina de Hollywood, sente num banco, feche os olhos, olhe para as pessoas que passam, imagine a demolição. Imagine o nada.

    Aos nosso peitos vazios, o Radiohead canta que "True Love Waits", o verdadeiro amor espera. Mas será que ainda há tempo? Daqui a pouco, ela não vai estar mais lá.

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