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    Livros e mostra analisam universo sexomaníaco de Hudinilson Jr.

    SILAS MARTÍ
    DE SÃO PAULO

    19/09/2016 02h00

    Todo dia ele acordava de manhã, fumava um cigarro, tomava um trago e descia até o porão do prédio atrás dos jornais e revistas que os vizinhos jogavam fora. Hudinilson Jr., lembrado pelos amigos como um "caçador contumaz de imagens", saía em busca de "deuses", "rapazes tesudos", "caras bombados".

    Seus recortes cobriam todas as paredes do quarto e sala onde morava na Bela Vista, no centro de São Paulo, e também os mais de cem cadernos de colagens que ele montou até seu último dia –há três anos, o artista foi encontrado morto, aos 56, sozinho em seu apartamento.

    Não foi um choque. Hudinilson saiu da vida aos poucos. Trocou a presença vibrante que teve como performer, grafiteiro e fotógrafo ao longo das décadas de 1980 e 1990 pela reclusão e o álcool, mas não deixou de construir seus trabalhos, que filtravam a realidade pelo vício em sexo.

    "Ele não teve limites na vida, não teve limites sexuais, não teve limites com relação ao uso do corpo dele", diz o crítico de arte Ricardo Resende. "Sua obra é visceral, reflete esse desejo à flor da pele."

    Embalado agora por essa aura quase mítica, do artista marginal, que morreu apodrecendo num colchão com marcas de cigarro, Hudinilson ressurge como alvo de dois livros e uma mostra no Centro Cultural São Paulo.

    "Posição Amorosa", o livro que Resende lança agora, surgiu de conversas do artista com o autor nas salas de reunião do CCSP pouco antes de sua morte. O volume chega às livrarias como o primeiro estudo de fôlego de sua obra, coroando esse seu momento de ascensão póstuma.

    Só depois de morto, Hudinilson perdeu a pecha de figura maldita do underground para se firmar como uma estrela redescoberta da contracultura. Além de ocupar uma sala especial na Bienal de São Paulo há dois anos, suas obras sofreram valorização meteórica e acabam de entrar para os acervos do MoMA, em Nova York, do Reina Sofía, em Madri, e do Malba, em Buenos Aires.

    Mário Ramiro, que fez parte do coletivo 3NÓS3 com Hudinilson e Rafael França, também escreve agora um livro –que deve sair até o fim do ano– sobre as ações do grupo, entre elas a noite no final dos anos 1970 em que saíram por São Paulo encapuzando esculturas, uma alusão ao sufoco do clima político nos estertores do regime militar.

    "Um amigo do Hudinilson tinha um Fusquinha e levou a gente para fazer o trajeto, mas depois ficou com medo", lembra Ramiro. "Então a gente saiu a pé pela cidade ensacando as estátuas e fotografando."

    Essas e outras memórias agora vêm à tona num esforço de Resende e Ramiro para dar dimensão crítica ao culto um tanto vazio em torno de Hudinilson, mais celebrado pela fama de junkie do que pela construção de um retrato incandescente do amor entre homens e da violência que atravessa essas relações.

    Seu apartamento, no caso, acabou se tornando o cenário desses novos estudos, uma espécie de sítio arqueológico onde seus biógrafos encontraram os pilares de sua obra.

    "O sexo estava exposto nas paredes em enormes pintos, tórax torneados e peludos de homens sujos de graxa, expostos como calendário de mulher pelada de borracharia", escreve Resende, sobre a casa do artista. "Era uma zona de desconforto, reservada para os poucos que se arriscavam a esse sujeito obcecado por sexo e dono de uma obra suja."

    Essa sujeira, aliás, também ressurge fetichizada nas páginas de "Posição Amorosa", esquadrinhada num ensaio fotográfico de Vitor Butkus, jovem pesquisador também envolvido nesse resgate da obra de Hudinilson Jr.

    XEROX DA PELE

    Mas o artista não vivia só do corpo dos outros. Inspirado pelo mito de Narciso, ele mesmo se retratava em imagens incansáveis, de registros 3 x 4 repetidos à exaustão às famosas performances em que se atracava com uma fotocopiadora, transformando seu embate com a máquina em quase abstrações monocromáticas, de pele e pelos espremidos contra o vidro.

    Sua obra em Xerox, aliás, acabou se tornando um emblema dessa época, uma estética apressada, urgente e cheia de falhas –de certa forma, um espelho de tempos de mudanças vertiginosas.

    Mesmo frágeis, suas fotocópias, colagens e cadernos sobreviveram pelo cuidado do artista em catalogar tudo, contrariando um pouco sua imagem de descontrolado –grande parte desses arquivos, aliás, está agora na mostra do CCSP.

    "Deve haver alguma coisa de genética em minha compulsão em colecionar, guardar, agrupar coisas", escreveu o artista, como se antecipasse o momento em que esses baús seriam abertos.

    Mário Ramiro lamenta que isso tenha ocorrido só depois de sua morte. "Hoje são centenas de pessoas que procuram sua família para visitar o mausoléu que virou seu apartamento", lembra. "Mas nenhuma dessas pessoas ousou tomar água no copo ensebado que ele oferecia, ninguém foi sentar nas cadeiras imundas em volta da cama dele. E agora, aquilo virou ponto de encontro da contracultura."

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