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    CRÍTICA

    Semana na TV tem filmes de Polanski, Eastwood e Almodóvar

    INÁCIO ARAUJO
    CRÍTICO DA FOLHA

    19/09/2016 07h27

    Segunda-feira (19)

    Parte da celebridade de "Matar ou Morrer" (1952, 12 anos TC Cult, 22h) deve-se à leitura feita a seu tempo a respeito do filme de Fred Zinnemann: o xerife Gary Cooper, que pede ajuda aos habitantes de sua cidade contra os bandidos que estão vindo para matá-lo corresponderia ao bom liberal que precisa da ajuda geral para enfrentar os macarthistas.

    Mesmo que se desconte esse aspecto (ou, sobretudo, descontando), esse continua um faroeste bastante honrado. Não muito mais que isso, entenda-se.

    Folhapress
    Grande Otelo em cena de Macunaíma
    Grande Otelo (dir.) em cena de "Macunaíma"

    "Homens e Deuses" (2010, 12 anos, Arte1, 0h), de Xavier Beauvois, está sintonizado com o faroeste que acontece no Islã. Em seu filme, um grupo de missionários é atacado por radicais no norte da África.

    No nosso terreiro, impõe-se por hoje "Macunaíma" (1969, 12 anos, Canal Brasil, 0h15), adaptação de Joaquim Pedro para o famoso romance de Mário de Andrade, que ele encheu de cores e atores de primeira.

    Terça-feira (20)

    "O Silêncio dos Inocentes" (1991, 16 anos, Sony, 19h) é, secretamente, uma história de amor e de desprezo. Pois tudo se passa em torno da relação que se estabelece entre uma estagiária do FBI e o prisioneiro Hanníbal, o canibal.

    Para Hannibal, o genial, a humanidade é insuportavelmente idiota. Mas, para a garota, ele abre uma exceção, desde que ela se mostre digna dos desafios que ele, em sua cela, propõe-lhe.

    Divulgação
    O ator Anthony Hopkins como Hannibal Lecter em cena de "O Silêncio dos Inocentes"; serial killer foi inspirado por Ed Gein
    O ator Anthony Hopkins como Hannibal Lecter em cena de "O Silêncio dos Inocentes"

    Hannibal não deixa de lembrar dom Isidro Parodi, o detetive de Borges e Bioy Casares, que resolvia seus enigmas na prisão. A principal diferença, além do tipo de apetite, é a relação transferencial, no sentido freudiano, que entretém com a moça.

    A propósito, ela tem de aceitar os desafios que Hannibal lhe propõe se quiser localizar e deter o "serial killer" em cujas mãos agoniza uma garota que, em outras circunstâncias, Hannibal também comeria. Literalmente, digo.

    Quarta-feira (21)

    Em "A Faca na Água" (1962, 14 anos, TC Cult, 0h25) já se manifestam certas características que Roman Polanski desenvolveria ao longo de sua vida. O filme é o seu primeiro longa e gira em torno de uma saída de barco de um marido inseguro, sua bela mulher e um jovem bonitão.

    No barco se dará a tentativa, pelo marido, de destruição moral do rapaz. Depois Polanski saiu da Polônia, mas o mundo de terror seguiu-o. Esse tipo de clima, em que pessoas se digladiam, mas o centro são seus próprios problemas, reencontraremos até em "Deus da Carnificina".

    A forte atmosfera de estranheza, assim como o suspense, são outros aspectos de sua obra que já podem ser encontrados aqui.

    Nem tudo ficou para sempre: o belo preto-e-branco do cinema polonês nos anos 1960 é uma dessas coisas. Outra, certa oscilação entre o vanguardismo (de afirmação, até certo ponto) e a aspiração a um público mais amplo.

    Quinta-feira (22)

    Assim como o positivismo, o espiritismo parece ser uma dessas correntes que emplacaram muito mais aqui no Brasil que na sua origem (França, em ambos os casos).

    Somos provedores de pessoas capazes de demonstrar, na Terra, a existência de um mundo posterior à nossa existência. Assim com o personagem de "Chico Xavier" (2010, livre, Warner, 17h43).

    TV Globo
    Ângelo Antonio, Nelson Xavier e Matheus Costa interpretam Chico Xavier em diferentes fases de sua vida
    Da esq.: Ângelo Antonio, Nelson Xavier e Matheus Costa (centro), intérpretes de Chico Xavier no filme

    Não importa tentar determinar o quanto possa haver de verdade, fraude ou erro bem-intencionado no médium. Importa que Daniel Filho trabalha bem essa passagem entre o aqui e o além: a psicografia de Xavier funciona como "prova" da existência desses espíritos que, eventualmente, voltam para trazer suas mensagens.

    No fundo, trata-se do velho princípio segundo o qual se a religião alivia nossas penas, tudo bem. No caso, com seus milhões de espectadores, o filme apontou para um filão a ser explorado pelo cinema brasileiro (e logo perdido).

    Sexta-feira (23)

    Existe um vazio de vida básico que ocupa os filmes de Laurent Cantet e que em "Retorno a Ítaca" (2014, 12 anos, TC Cult, 16h15) se materializa no encontro entre velhos amigos por ocasião do retorno a Cuba de um amigo que há muito vivia na Espanha.

    É na distância entre o sonho revolucionário de sua juventude e a realidade da idade madura que se constrói o relato escrito por Leonardo Padura. A Cuba da crise pós-URSS é, pior que pobre, um lugar perdido no mundo, sem perspectiva ou esperança.

    Divulgação
    Cena do filme "Retorno a Ítaca", de Laurent Cantet
    Cena do filme "Retorno a Ítaca", de Laurent Cantet

    Para os personagens que dialogam nisso que aqui no Brasil chamaríamos de laje, a cidade que contemplam é a imagem da existência desperdiçada. Senão para todos, para quase todos, pois existe um que, naturalmente, se deu bem na burocracia. O que não serve para resgatar os ideais e muito menos o tempo perdido. Antes pelo contrário.

    Sábado (24)

    Eis outra resposta a quem se espanta pelo fato de não produzirmos filmes convincentes sobre esportes (futebol, em particular, de que fomos um dia o país): eles não são sobre esportes.

    O drama esportivo esgota-se no campo, na quadra. O que pode fazer o interesse cinematográfico é o drama vivido por algum jogador, o aspecto moral implicado etc.

    Divulgação
    ORG XMIT: 580801_0.tif Cinema: o ator Morgan Freeman (à esquerda), no papel de Nelson Mandela, e o ator Matt Damon, no papel de François Pienaar, em cena do filme "Invictus", dirigido por Clint Eastwood. *** Nelson Mandela and MATT DAMON as Francois Pienaar in Warner Bros. Picturesá and Spyglass Entertainmentás drama ªInvictus,Ó a Warner Bros. Pictures release.
    Morgan Freeman (esq.) e Matt Damon em cena do filme "Invictus"

    No caso de "Invictus" (2009, livre, Cinemax, 21h), tudo isso está em jogo: aprendemos a a trajetória de Nelson Mandela, acompanhamos o desenvolvimento de um campeonato de rúgbi, o surgimento de uma nação, a África do Sul, que tenta superar suas enormes e imemoriais contradições pela conciliação.

    Clint Eastwood consegue juntar todos esses aspectos, discerni-los, dissecá-los: daí ter surgido um belo filme de esporte. Que, obviamente, não é um filme de esporte. (Vale para quase todos os gêneros).

    Domingo (25)

    A paródia é o território do contemporâneo. E poucos sabem melhor do que Pedro Almodóvar provocá-lo e controlá-lo. Tirar dele todas as consequências.

    No começo, existia não raro um melodrama que virava comédia. Talvez o último suspiro dessa fase esteja em "Ata-me" (1989, 16 anos, TC Cult, 22h), em que o humor decorre tanto da maneira pouco usual do protagonista de se aproximar da amada (o sequestro) como da maneira como ela reage.

    Divulgação
    ORG XMIT: 203001_1.tif Cinema: Cena do filme "Tudo Sobre Minha Mãe", de Pedro Almodóvar. (Divulgação)
    Cecilia Roth (de vermelho) e Marisa Paredes em cena de 'Tudo Sobre Minha Mãe'

    O desejo já está na frente. Sempre esteve. Mas seu transbordamento é de certa forma mitigado pelo humor.

    "Tudo Sobre Minha Mãe" (1999, 14 anos, TC Cult, 20h) já traz o, digamos, Almodóvar definitivo, em que os motivos do melodrama se acumulam e se cruzam. Parecem querer provocar o riso, não mais para mitigar nada, mas porque talvez sejamos mesmo personagens cômicos. Mortes, amores, transformações, pais desconhecidos: tudo acontece. Mas o riso que se anuncia já não vem.

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