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    Crítica

    Obra de McEwan é um lampejo de inteligência em tempos estúpidos

    JOCA REINERS TERRON
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    08/10/2016 02h11

    Roland Barthes dizia que, ao pensar as diferentes definições de realismo, seria possível escrever a história da literatura. Ian McEwan acrescenta nova camada a uma definição sempre mutante. Narradores mortos são bastante conhecidos. Não nascidos, porém, são mais incomuns.

    E é essa voz ainda em formação a escolhida para relatar o complô de dois amantes, Trudy (a mãe que a carrega na barriga) e Claude, irmão do corno John Cairncross, assassinado por ambos; a informação aqui não chega a ser "spoiler": desde a epígrafe o leitor sabe que o livro parodia "Hamlet".

    Stefania D'Alessandro/Getty Images
    MILAN, ITALY - DECEMBER 07: Ian McEwan attends 'Che Tempo Che Fa' TV Show on December 7, 2014 in Milan, Italy. (Photo by Stefania D'Alessandro/Getty Images) ORG XMIT: 527059447 ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    O escritor britânico Ian McEwan em um programa de TV em dezembro de 2014

    Testemunha não tão privilegiada dos acontecimentos quanto se poderia imaginar, o narrador-bebê protesta a certa altura sobre a proximidade inquietante do pênis do amante da mãe e rival de seu pai de sua face.

    Com verve moldada por "podcasts" de filosofia e radionovelas ouvidas pela mãe, esse Hamlet pré-natal não hesita em praguejar contra o tédio, a dor da consciência, e a considerar aspectos de seu próprio futuro, como a Terceira Guerra Mundial ou a reconhecimento de múltiplos gêneros, concluindo que a biologia não determina o destino, e "isso é algo a ser comemorado."

    Enclausurado
    Ian McEwan
    l
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    Excitante discussão sobre o livre-arbítrio nos tempos da genética, além de romance policial no qual todos os atos são conhecidos de antemão, "Enclausurado" sai ileso de suas escolhas arriscadas, da possível inverossimilhança do narrador aos jogos metaliterários, ao reverenciar a fase inicial do próprio autor e sua morbidez hilária, em autorreverência muito bem-vinda.

    Em brilhante reafirmação de que o realismo não é apenas aquele do século 19 e que a realidade não passa de prisma idiossincrático através do qual se processa a literatura, Ian McEwan nos presenteia com um lampejo de inteligência em tempos tão estúpidos.

    ENCLAUSURADO
    AUTOR Ian McEwan
    TRADUTOR Jorio Dauster
    EDITORA Companhia das Letras
    QUANTO: R$ 39,90 (200 págs.)

    Edição impressa

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