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    Elena Ferrante existe e não há motivo para buscar-lhe outro nome

    FRANCESCA ANGIOLILLO
    EDITORA-ADJUNTA DE CULTURA

    08/10/2016 02h00

    O meio literário praticamente não falou em outra coisa desde que, no domingo (2), o italiano Claudio Gatti publicou no jornal "Il Sole 24 Ore" –e, simultaneamente, em inglês, francês e alemão– sua pesquisa.

    Elena Ferrante, a autora da aclamada Série Napolitana, seria a tradutora de origem germânica Anita Raja, nascida em Nápoles, mas crescida em Roma, onde vive desde os três anos.

    A convicção existia e pululava desde ao menos 2014. O nome era ventilado em conferências, artigos, tuítes.

    Em outros momentos, num movimento que não chega a espantar, chegou-se a argumentar que Ferrante seria o escritor napolitano Domenico Starnone, o marido de Raja.

    Gatti trouxe as provas –um cruzamento de registros imobiliários, aumentos de vendas na E/O propelidos por Ferrante, maior estrela da casa editorial, e os altos valores pagos pela editora a Raja no mesmo período, muito acima dos proventos normais de um tradutor.

    Esperava talvez, diante delas, uma confissão que não veio.

    Reprodução
    tradutora Anita Raja em entrevista para NYU Florence. Foto: Reproducao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
    A tradutora Anita Raja, apontada por jornalista como a pessoa por trás do nome Elena Ferrante

    O homem não suporta bem os segredos, e Gatti é um repórter investigativo. Seu papel é revelá-los. Seu trabalho, como o de Ferrante, lê quem quer.

    As vendas dela subiram após a publicação do texto dele, sobretudo as do primeiro tomo de sua tetralogia, "A Amiga Genial", o que indica que novos leitores tiveram sua curiosidade despertada pelo ar de fofoca, amplificado por meios que fizeram até listas resumindo o quiproquó.

    Um dos artigos, publicado no blog da "London Review of Books" (por um anônimo, diga-se), intitulava-se "por que estragar a diversão?".

    O título sintetiza o desconforto.

    Elena Ferrante construiu sua carreira literária, desde 1992, sob esse nome. Sua recepção na Itália aumentou com o estouro internacional da Série Napolitana, tetralogia que percorre subgêneros, como o romance de formação e o romance social, em que a narradora, uma escritora, revela tudo o que sabe sobre sua amiga desaparecida.

    Nela, Ferrante deu um passo ousado. Nomeou sua narradora Elena. Entrou nas convenções da autoficção e fez muitos leitores procurarem nos livros não a história da personagem, mas a da autora, deixando-lhe pistas possivelmente falsas, de uma infância miserável superada pela força da literatura.

    O gesto talvez tenha sido uma crítica a essas mesmas convenções. Com certeza, foi um jogo literário.

    Até a fama desses romances, acolhidos com entusiasmo tanto pelo público como pela crítica, poucos terão se perguntado quem era a escritora escondida.

    A insistência com que se buscou essa revelação não é só uma invasão da sua privacidade, como clamaram seus editores, mas de sua ficção. É exigir os fatos reais quando se tem os narrados.

    Elena Ferrante existe e não há motivo para buscar outro nome.

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